Em um relatório divulgado nesta terça-feira (10/12), a Comissão da Verdade “Vladimir Herzog” de São Paulo concluiu que Juscelino Kubitschek e seu motorista particular, Geraldo Ribeiro, foram vítimas de um atentado arquitetado por meio de uma conspiração do então governo militar brasileiro contra o ex-presidente da República. De acordo com informações inéditas do documento, o laudo de uma perícia realizada no ano de 1996, em Minas Gerais, no corpo do motorista de JK e um fragmento metálico encontrado no crânio do mesmo, desapareceram das dependências da Polícia Civil.
Foto: Igor Truz
Vereadores Police Neto, Young, Natalini, Covas Neto e Calvo, membros da CNV de São Paulo
Para o vereador e presidente da Comissão da Verdade de SP, Gilberto Natalini (PV), o desaparecimento da prova pericial é um indício de que não se tinha vontade de constatar que JK fora assassinado. “O fato deste fragmento metálico ter sumido, ter sido extraviado é uma nova prova. Ninguém sabia disso ainda. Fomos nós quem descobrimos”.
Com 90 pontos, o “Relatório JK” descarta a tese de que Juscelino Kubistchek tenha morrido em um acidente de trânsito. A versão oficial da morte do ex-presidente conta que no dia 22 de agosto de 1976, JK e seu motorista particular, Geraldo Ribeiro, viajavam para a cidade do Rio de Janeiro pela Rodovia Dutra em um Opala quando, no Km 165 (atual Km 328), perderam o controle do veículo e bateram de frente contra um caminhão carreta que trafegava no sentido contrário.
No entanto, para os vereadores paulistanos, Geraldo Ribeiro teria sido alvejado por um disparo de arma de fogo na cabeça e apenas depois disso teria perdido o controle do veículo e invadido a pista contrária.
“Nós estamos declarando neste relatório que JK foi assassinado. Estamos convictos disto. Temos certeza que o governo militar mandou matar Juscelino”, disse Natalini. O vereador declarou que vai enviar o documento para a presidente Dilma Rousseff, e disse esperar que o Estado brasileiro reconheça o homicídio.
Fragmento metálico
Segundo o relatório, um Exame de Corpo de Delito realizado em 14 de agosto de 1996 pelo IML-MG (Instituto Médico Legal de Minas Gerais), quando da reabertura do Caso JK, constatou a presença de um fragmento metálico de forma cilindro-cônica, medindo sete milímetros de diâmetro, na fossa posterior do crânio de Geraldo Ribeiro.
O IML-MG constatou que o material se tratava, na verdade, de um fragmento de prego enferrujado e corroído, que posteriormente foi associado ao caixão em que estava enterrado o motorista. De acordo com o laudo, o material seria encaminhado para análise do Instituto de Criminalística.
“Como é que um prego vai entrar dentro do crânio de um cadáver? Isto é conto da carochinha. Não sei como o país pode acreditar em uma coisa dessas! Nós não acreditamos e achamos que aquilo é um projétil”, disse o vereador Natalini.
Depois de avaliar o fragmento, o Instituto de Criminalística de Minas Gerais constatou que o material examinado se tratava de “liga de ferro (aço)”, sem qualquer outra comparação ou consideração.
Em depoimento à Comissão da Verdade de SP, o perito criminal Antonio Carlos de Minas criticou a fragilidade do exame pericial feito pela Polícia Civil de Minas no material encontrado dentro do crânio de JK. Ele contestou ainda o Exame de Corpo de Delito realizado na ossada do motorista de JK e garantiu ter observado o crânio ainda íntegro com um buraco redondo característico de perfuração por projétil de arma de fogo, mas afirmou ter sido impedido de fotografar os restos mortais. O laudo oficial do IML-MG, no entanto, concluiu pela ausência de sinais de perfuração por arma de fogo e declarou que o crânio de Geraldo Ribeiro estava deteriorado por ação do tempo.
A Comissão da Verdade de SP contou que este laudo não foi anexado ao processo do Caso JK. Em 5 de setembro de 1996, outro laudo atestou a ausência de chumbo no fragmento metálico. O documento original também não foi apresentado pela Polícia Civil de MG.
Após solicitar que o Governo mineiro liberasse o laudo original e o material encontrado no crânio de Geraldo Ribeiro para novos exames periciais, a Comissão da Verdade de SP recebeu um ofício, assinado em 23 de outubro pelo secretário estadual de Defesa Social de Minas, Rômulo de Carvalho Ferraz, informando que “não foi localizado o laudo original e os materiais solicitados (fragmento metálico)”.
“Acidente”
Na época, autoridades que conduziam as investigações sobre a morte de JK responsabilizaram o motorista Josias Nunes de Oliveira pelo acidente. Oliveira foi acusado de ter colidido a dianteira do ônibus da “Viação Cometa”, dirigido por ele, contra a a traseira esquerda do Opala do ex-presidente, desequilibrando o veículo. Depois disso, o Opala invadiu a pista contrária, batendo de frente com a carreta conduzida por Laudislau Borges. O ex-motorista de ônibus foi a julgamento por duas vezes, mas foi inocentado.
De acordo com o relatório dos vereadores paulistanos, o carro de JK não encostou no ônibus conduzido pelo motorista Oliveira. Segundo o documento, à época do “acidente”, nenhum dos 33 passageiros a bordo do ônibus prestou queixa ou mencionou ter havido um choque entre o veículo da viação cometa e o Opala acidentado. Oliveira disse ainda que, após o acidente, dois homens foram à sua casa e teriam oferecido "uma mala de dinheiro" ao motorista para que ele assumisse a responsabilidade pelo acidente.
A principal suspeita da Comissão da Verdade paulistana é de que, ao tentar ultrapassar o ônibus conduzido por Oliveira pela direita, o Opala que conduzia o ex-presidente estava, na verdade, tentando fugir de outro veículo (supostamente uma Caravan, segundo testemunhas) que teria emparelhado com o Opala e disparado contra Geraldo Ribeiro.
Em depoimento original declarado à Comissão da Verdade de SP, o motorista de caminhão Ademar Jahn afirmou que conduzia uma carreta que estava imediatamente atrás do caminhão dirigido por Laudislau Borges, que bateu de frente com o carro de JK. Ele disse ter visto o momento exato em que o Opala de Kubistchek atravessou a pista e foi para a contramão.
Segundo Jahn, o motorista do Opala estava debruçado, com a cabeça caída entre o volante e a porta do automóvel, estava desacordado e inconsciente antes de se chocar com a carreta de Laudislau Borges.
Provas documentais
O relatório da Comissão “Vladimir Herzog” destaca ainda contradições em diversas provas documentais sobre a morte de JK. Sobre o acidente, em Laudo de Exame em Local de Acidente produzido pelo perito Haroldo Ferraz no dia da morte do ex-presidente, foram sete anexadas fotografias dos veículos envolvidos na colisão. No documento, as fotos nº 3 e 5 mostravam a parte lateral esquerda e traseira do Opala de Kubistchek com a lataria e a lanterna esquerda intactas.
No dia seguinte ao ocorrido, Haroldo Ferraz foi substituído pelo perito Sérgio de Souza Leite e outro laudo foi registrado pelo Instituto Carlos Éboli, da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro. Outras 124 fotos foram anexadas ao novo laudo. Uma delas, a fotografia nº 64, registrava a traseira do Opala com a lanterna esquerda quebrada e a lataria amassada.
Para os vereadores paulistanos, o carro foi alterado pelos militares que ficaram sob guarda e controle do veículo, para confirmar a tese de que teria perdido o controle após ter sido atingido pelo ônibus da Viação Cometa. “Eles [militares] fizeram de tudo pra provar que o ônibus teria desequilibrado o Opala, mas todas as provas dizem o contrário”, afirmou Gilberto Natalini.
O Relatório JK destaca ainda que, à época do ocorrido, as autoridades responsáveis pela perícia dos cadáveres fizeram um raio-x no corpo de Juscelino e não fizeram o mesmo com o corpo de seu motorista.
“Porque não fizeram o Raio-X no cadáver do Geraldo Ribeiro? Quero ver quem explica isso. É porque não queriam explicação prática de que ele tinha levado um tiro na cabeça. Tudo isso leva a crer que existia uma conspiração sim, e que queriam colocar a culpa no motorista de ônibus”, disse Natalini.
No laudo do dia 22 de agosto, Haroldo Ferraz registrou que as fotografias dos cadáveres não foram anexadas aos laudos por conta de “ordens superiores”, mas informou que as mesma permaneceriam sob reponsabilidade dos diretores do Instituto Carlos Éboli. Depois da substituição do perito, no entanto, as fotografias nunca foram encontradas.
Outro erro pericial apontado pelos vereadores paulistanos é o fato de que, quando o Caso JK foi reaberto em 1996, os peritos examinaram um veículo com o número de motor 7321818. Todavia, segundo o título de propriedade do Opala, o número do veículo era 0J0403M. A análise pericial teria sido realizada, portanto, em outro veículo.
Motivações
De maneira incisiva, o texto divulgado hoje na Câmara Municipal de SP afirma que a morte de JK foi resultado de um complô arquitetado pelo próprio governo federal brasileiro. “Não tem nem linha mole, nem linha dura. Na nossa opinião, foi o regime militar que governava o país que organizou a morte de Juscelino”, disse o presidente da Comissão da Verdade.
O relatório faz ligações entre o brigadeiro Newton Junqueira Villa-Forte, dono do Hotel-fazenda Villa-Forte e o então chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), general João Batista Figueiredo. Villa-Forte foi professor de Figueiredo na Escola Militar de Realengo, no Rio de Janeiro.
No dia 22 de agosto de 1976, JK e seu motorista haviam partido de São Paulo às 14 horas no dia do “acidente”, que aconteceria apenas por volta da 18 horas. Depois de dirigir por duas horas, Geraldo Ribeiro chegou no acesso ao Hotel Fazenda Villa-Forte. Esta foi a última parada antes da morte do ex-presidente.
De acordo com relatos de Serafim Jardim, ex-secretário de JK, o ex-presidente tinha uma reunião marcada com dois emissários do então general-presidente Ernesto Geisel para o dia 25 de agosto, dois dias depois de sua morte. A suspeita, levantada no livro Momentos Decisivos, de Carlos Murilo Felício dos Santos, é que alegando urgência para a reunião, os emissários tentaram antecipar o encontro para o Hotel Villa-Forte.
Segundo o documento, Villa-Forte também tinha relações próximas ao então Ministro-Chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva. Em 1955, ainda tenente-coronel do Exército, Couto e Silva fora preso acusado de participar de um complô para impedir a posse do recém-eleito presidente da República, o próprio Juscelino Kubistchek.
Em 1974, Juscelino Kubistchek havia recuperado seus direitos políticos e no ano de 1976 já articulava, de acordo com o relatório, uma suposta candidatura nas eleições de 1978 para a Presidência da República. Nesta eleição o regime militar acabou elegendo o general Figueiredo.
Operação Condor
Um dos indícios ligados à morte de JK apresentados no documento da Comissão da Verdade é uma carta, de 28 de agosto de 1975, atribuída ao coronel Manuel Contreras Sepulveda então diretor do Dina, o serviço secreto da ditadura militar do Chile, e endereçada a Figueiredo, chefe do SNI.
Na correspondência, Sepulveda alertava Figueiredo do apoio de políticos democratas dos Estados Unidos a Juscelino Kubistchek e Orlando Letelier, ex-ministro das Relações Exteriores do Chile. Para o coronel chileno, o apoio norte-americano poderia afetar “seriamente a estabilidade do Cone Sul” das Américas. No dia 21 de setembro, um mês depois da morte de JK, Letelier foi assassinado em Washington, nos EUA, quando uma bomba explodiu em seu carro.
O documento da Comissão da Verdade paulistana destaca também que, em um período de 272 dias, perderam suas vidas, além de JK, o ex-presidente João Goulart (6/12/76) e o ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda (21/5/77).
A carta de Sepulveda enviada a Figueiredo citada no Relatório JK, que agradecia ainda um suposto plano arquitetado pelo general brasileiro para coordenar as ações entre os dois países contra opositores políticos, fora usada mais tarde para denunciar a chamada Operação Condor. Após receber a correspondência de um alto funcionário do serviço de informações dos EUA, o jornalista norte-americano Jack Anderson denunciou no jornal The Washington Post, em 1979, a articulação de regimes militares da América do Sul para eliminar adversários políticos, com o apoio do Serviço de Inteligência dos EUA.
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