Esses dois minutos do histórico discurso de Ulysses Guimarães, na sessão promulgatória da Constituição, em 5 de outubro de 1988, lavaram a alma de uma Nação que teve suas liberdades garroteadas por mais de duas décadas.
Impressionante como, ainda hoje, milhões de
pessoas neste país, muitas delas abaixo da faixa dos 25 anos - idade em que a
natural rebeldia juvenil aguça o senso crítico, de inconformação com tudo e
todos -, não repilam, nã rejeitem com todas as suas forças e com todo o seu vigor, a ideia
de se "comemorar" uma data como 31 de março de 1964, que inaugurou um
período de ditadura no Brasil.
Não se pode comemorar a dor.
Não se pode comemorar o horror.
Não se pode comemorar a tortura.
Não se pode comemorar cassação por motivos
políticos.
Não se pode comemorar o garroteamento das
liberdades.
Não se pode comemorar a censura à Imprensa e à
liberdade de expressão e opinião de um modo geral.
Por isso, o brado do velho Ulysses, que presidiu
a Assembleia Nacional Constituinte, deve o ser o de todos nós: "Temos ódio
à ditadura. Ódio e nojo."
Abaixo, a íntegra do histórico discurso de
Ulysses:
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"Senhoras e senhores constituintes.
Dois de fevereiro de 1987. Ecoam nesta sala as
reivindicações das ruas. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai
mudar. São palavras constantes do discurso de posse como presidente da
Assembléia Nadcional Constituinte.
Hoje. 5 de outubro de 1988, no que tange à
Constituição, a Nação mudou. (Aplausos). A Constituição mudou na sua
elaboração, mudou na definição dos Poderes. Mudou restaurando a federação,
mudou quando quer mudar o homem cidadão. E é só cidadão quem ganha justo e
suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando
descansa.
Num país de 30 milhões, 401 mil analfabetos,
afrontosos 25 por cento da população, cabe advertir a cidadania começa com o
alfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição como um vigia espera a aurora.
A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o
fizemos com amor, aplicação e sem medo.
A Constituição certamente não é perfeita. Ela
própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim.
Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios
promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por
imposição de sua honra.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (Aplausos)
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (Aplausos)
Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela
desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina.
Foi a audácia inovadora, a arquitetura da
Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna.
O enorme esforço admissionado pelas 61 mil e 20
emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de
assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuidas, relatadas e
votadas no longo caminho das subcomissões até a redação final.
A participação foi também pela presença pois
diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam livremente as 11 entradas
do enorme complexo arquitetônico do Parlamento à procura dos gabinetes,
comissões, galeria e salões.
Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.
Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.
Como caramujo guardará para sempre o bramido das
ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio.
Nós os legisladores ampliamos os nossos deveres.
Teremos de honrá-los. A Naçao repudia a preguiça, a negligência e a inépcia.
Soma-se a nossa atividade ordinária bastante
dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 leis ordinárias. Não
esquecemos que na ausência da lei complementar os cidadãos poderão ter o
provimento suplementar pelo mandado de injunção.
Tem significado de diagnóstico a Constituição
ter alargado o exercício da democracia. É o clarim da soberania popular e
direta tocando no umbral da Constituição para ordenar o avanço no campo das
necessidades sociais.
O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais
do que isso, o povo é o superlegislador habilitado a rejeitar pelo referendo os
projetos aprovados pelo Parlamento.
A vida pública brasileira será também
fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao prefeito, do senador
ao vereador.
A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o
cupim da República. República suja pela corrupção impune toma nas mão de
demagogos que a pretexto de salvá-la a tiranizam.
Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia
quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Não é a Constituição
perfeita. Se fosse perfeita seria irreformável.
Ela própria com humildade e realismo admite ser
emendada dentro de cindo anos.
Não é a Constituição perfeita, mas será útil,
pioneira, desbravadora, será luz ainda que de lamparina na noite dos
desgraçados.
É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai
caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros
e ignorados da miséria.
A socidedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a
inércia ou o antagonismo do Estado.
O Estado era Tordesilhas. Rebelada a sociedade
empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do mundo.
O Estado encarnado na metrópole resignara-se
ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade
territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes sob a liderança de
André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira que cunhou a
frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: Desobeder a El Rei para
servir El Rei.
O Estado capitulou na entrega do Acre. A
sociedade retomou com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e
seus seringueiros.
O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com
Teotônio Vilella, pela anistia, libertou e repatriou.
A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras
que o mataram. (Aplausos acalorados).
Foi a sociedade mobilizada nos colossais
comícios das Diretas Já que pela transição e pela mudança derrotou o Estado
usurpador.
Termino com as palavras com que comecei esta
fala.
A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação
vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da
sociedade rumo à mudança.
Que a promulgação seja o nosso grito.
Mudar para vencer. Muda Brasil.