A Assembleia de Deus completará 104 anos de fundação no próximo dia 18. Nasceu aqui, sabemos. Hoje, quero refletir com você sobre aqueles humildes começos dessa que se tornou a maior igreja evangélica brasileira e, em termos de movimento protestante moderno, a maior igreja do mundo.
Era uma tarde quente de verão quando o navio “Clement” aportou em águas belenenses. 1910. Dia da Bandeira. No meio da tripulação, dois jovens suecos solteiros: Daniel Berg e Gunnar Vingren (na imagem). Procediam dos Estados Unidos, onde trabalhavam há alguns anos para sobreviver à crise financeira que assolava a Escandinávia. De berço batista, estavam bastante tocados por um movimento de avivamento espiritual que varria a América e parte da Europa, com ênfase na vida consagrada a Deus pela oração e pelo recebimento de dons. Reacendia-se, assim, a chama pentecostal das missões transculturais.
Foi muito difícil para os missionários. Dependiam da Providência para tudo. Não tinham dinheiro para as passagens do Clement. Não sabiam falar português. Viajaram no porão suportando calor, barulho e o vômito que se misturava à serragem lançada no chão para mitigar o desconforto. Durante catorze dias, receberam um prato de sopa. A mala de roupas ficara retida em Nova Iorque por causa de uma greve na alfândega. Portanto, usavam as mesmas vestes pesadas do embarque friorento na América.
Em Belém, ninguém os esperava. Gastaram as penúltimas moedas numa modesta pensão da Rua João Alfredo, até que o bondinho que os levaria à Primeira Igreja Batista na manhã seguinte limpasse-lhes o bolso. Era o dia 20 de novembro de 1910. Foi nesta data que Vingren e Berg foram recebidos e hospedados por um baixo aluguel no porão daquele templo, situado na Rua João Balby, antigo número 406. Foi um apoio importantíssimo, um gesto fraternal louvável pela coragem de receber dois estrangeiros, mas sabemos que esse apoio findou na noite de 13 de junho de 1911, quando alguns anfitriões não puderam mais conviver com a mensagem entusiasta dos jovens missionários e os “desligaram” da congregação.
Naquela noite, Daniel Berg e Gunnar Vingren perderam aparentemente toda base. De uma vez, estavam sem igreja e sem ter onde morar. Sob o céu de Belém, ali na calçada da igreja, alguns irmãos foram se solidarizar com os missionários, tendo o casal Henrique e Celina Albuquerque oferecido um abrigo na casa da família, situada na Rua Siqueira Mendes. Foi ali, ao lado da Catedral da Sé, que Daniel Berg e Gunnar Vingren e mais dezenove irmãos egressos da Primeira Igreja Batista fundaram a “Missão da Fé Apostólica” no domingo de 18 de junho. Mas, as lutas só estavam começando.
Grande foi a perseguição religiosa contra a Assembleia de Deus. Batismos em águas tinham de ser realizados de noite. Em Mosqueiro, moradores tentaram queimar a casa onde Gunnar Vingren repousava muito doente. Para não morrer, ardendo de febre, o missionário saiu rastejando no igapó em plena madrugada. Mesmo assim foi perseguido e caçado com uso de cães. Escapou, mas teve o corpo dilacerado por espinhos. Em Quatipuru, toda a igreja foi presa depois de um culto e, na manhã seguinte, Daniel Berg e os irmãos, sem dormir e com fome, obrigados pelas autoridades a capinar o cemitério da cidade, só concluindo a tarefa cerca do meio-dia.
Perigos de todos os lados. Naufrágios no Marajó. Cobras. Jacarés. Onça. Mas nada se comparava à perseguição humana. No Amapá, foram saqueados os pertences do missionário Clímaco Bueno Aza e suas Bíblias foram queimadas em praça pública. Fome. Enquanto Daniel Berg enfrentava os perigos no interior, em Belém, a família de Gunnar Vingren padecia necessidade. “Ó, Frida, o que temos hoje para comer?”, perguntava o primeiro pastor da Assembleia de Deus à esposa. “Bucho, só bucho, nada mais”. Esta era uma cena comum, relatada a mim por uma pioneira que ainda vive, cuja mãe ajudava os missionários na época do nascimento do filho Ivar Vingren.
Em 1911, pouquinhos crentes. O pouco dinheiro doado empregava-se principalmente para socorrer pobres e doentes. Em 1914, quando a Assembleia se mudou para o seu primeiro templo, na Nove de Janeiro, a congregação não chegava a cem pessoas. A renda era mínima. Samuel Nyström, segundo pastor, vivia num quarto pobre e utilizava caixotes como móveis. Tudo era mesmo muito difícil naqueles humildes começos. Cultos eram interrompidos pelas pedradas. O sangue descia, mas a fé se fortalecia. A mão que atirava a pedra mais tarde seguraria a Bíblia, trocando o ódio pela doce “Paz do Senhor!”.
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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br
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