segunda-feira, 8 de junho de 2015
Em nome do Mal, uma obra de arte
Muitas vezes, pessoas se arrogam o direito de patrulhar consciências, disparam impropérios contra os cidadãos. Às vezes, sob a capa do afeto, o cordialismo esconde as crueldades da discriminação e da desigualdade. Rasgado o véu conveniente da benevolência, emerge da mansidão hipócrita a inclemente violência do mandonismo e da submissão. Alguns exageram, ofensores fixam a máscara da indignação para simular penitência à vida civilizada. Hein? E aí? Quem sabe, então, os leitores podem estar pensando aonde quero chegar, se estou filosofando ou fazendo metáfora. Nada disso, estava lendo um texto sobre Woody Allen (na foto), o cineasta, por quem tenho grande admiração, que estreou uma nova produção no Festival de Cannes, diz que filosofia - ao lado das mulheres, do jazz e da mágica - é uma das paixões de sua vida.
Às portas dos 80 anos, com 46 filmes no currículo, continua firme como nunca. Sua figura esquálida, cabelos desalinhados, grande óculo com armação escura, lentes fundo de garrafa, com cara de zangado é capaz de compartilhar suas reflexões sobre arte, medo da morte e métodos para lidar com atores. Para a crítica, entretanto, Woody é visto como algo muito além de “distração”. Usa-se a palavra gênio para descrevê-lo. Ele não gosta dessa comparação. Seu biógrafo oficial, o escritor Eric Lax, criou uma classificação da filmografia do cineasta nova-iorquino em que ele divide sua produção em três gêneros principais de obras: comédias de amor, dramas existenciais e histórias sobre contravenções.
As várias representações sobre crimes, que tiveram um apogeu em Crimes e pecados (1989), servem para Woody exercitar um de seus prazeres preferidos no cinema: mostrar que existe uma estética no Mal. Além do mais, essa centelha de criminalidade gera chanchadas, como é o caso de Trapaceiros (2000), mas pode também render thrillers sem lugar para o riso, como o subestimado O sonho de Cassandra (2007). É a essa linhagem que se filia a crônica da crise de angústia do professor de filosofia Abe Lucas, vivido por Joaquin Phoenix em “O homem irracional”, seu último longa-metragem, que foi exibido recentemente no Festival de Cannes, fora da competição pela Palma de Ouro. Foi aplaudido pela crítica como um de seus melhores filmes nas últimas décadas.
O homem irracional caminha por um terreno onde o cineasta se sente muito confortável: as teorias filosóficas que vão de Immanuel Kant (1724-1804) a Jean-Paul Sartre (1905-1980). Detalhe: o cenário não é a Nova York idílica de Woody, mas Newport e Providence, duas cidades vizinhas do Estado de Rhode Island, nos Estados Unidos, com ambiente universitário e praias ao redor. Essa escolha tem um significado simbólico para Woody: o Estado foi o primeiro entre as antigas 13 colônias britânicas, embrião dos Estados Unidos da América, a declarar sua independência do Reino Unido, no século XVIII. Um lugar que lutou pela sua autonomia política e intelectual, cenário de um assassinato que ganha requintes de obra de arte.
Barrigudo e impotente, Lucas é a depressão em pessoa, por causa de traumas, explicados por uma desilusão amorosa, ao mesmo tempo se especula sobre uma questão pessoal ligada à Guerra do Iraque. O professor chega com os tiques dos anti-heróis típicos dos filmes de Woody, cheio de neuroses e de fraquezas ante o sexo feminino. Durante um papo de restaurante, ele descobre o drama de uma jovem refém das ações de um juiz. Da inércia para atitude. O desejo de matar passa a reger seu dia a dia.
Ao se deixar contagiar pelo vírus da maldade, Lucas muda, e o filme também: o que era bem-humorado vai ficando soturno; o que era comédia vira suspense. O Woody das gargalhadas cabeça que todos conhecem dá lugar a um pensador do cinismo e da crueldade, que se expressa com uma crônica sobre o mergulho de um pensador na irracionalidade plena. O mistério do filme é a morte. E Woody vai desenhá-la na tela numa narrativa sedutora.
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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com
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