segunda-feira, 15 de junho de 2015

O mais infame dos discursos do ódio



A Batalha de Berlim foi a última ocorrida em solo europeu durante a Segunda Guerra Mundial. Na época, a ofensiva soviética contra as forças alemãs tinha como objetivo acabar com o grande conflito antes que os Aliados Ocidentais entrassem na capital do Reich. Nos derradeiros dias de embates, perante a queda inevitável do seu império, Adolf Hitler supostamente cometeu suicídio. Quase em seguida, Berlim se entregou e, sem nenhuma alternativa, em 7 de maio de 1945, a Alemanha assinou a rendição.
Uma semana antes, em 30 de abril de 1945, o Exército americano tomou Munique do controle nazista. Ao sitiar a cidade, as tropas aliadas também se apoderaram da editora Franz Eher Nachfolger GmbH, responsável pelas publicações do Terceiro Reich. Com o fim da ocupação, os direitos autorais da antiga editora se tornaram propriedade do Estado da Baviera. A maior - e mais infame - peça do acervo é, sem dúvida, o livro Mein Kampf (Minha luta, em português), manifesto nazista escrito por Hitler entre 1924 e 1925, aos 35 anos.
Durante 70 anos que se seguiram após a Segunda Mundial, a Baviera controlou firmemente a publicação do manifesto nazista, símbolo do pensamento racista e beligerante que levou o mundo a seis anos de combates sangrentos e a 50 milhões de mortes. Desde então, nenhuma nova edição teve o aval para impressão. Segundo o Direito alemão, porém, 70 anos é o limite de validade dos direitos sobre uma obra após a morte do autor. Hitler morreu em 1945, e Mein Kampf entrará em domínio público a partir de janeiro de 2016. Qualquer um terá, então, direito a publicá-lo. É crível, mas já é possível encontrar o texto na internet, em leilões de edições raras ou em sebos. O maior receio dos alemães é quanto a possíveis usos comerciais e, principalmente, políticos do texto.
O Instituto de História Contemporânea de Munique trabalha há três anos para responder a esse dilema. Com uma equipe de cinco historiadores, eles acham que a Alemanha precisa enfrentar o texto de Hitler e finaliza uma edição comentada do livro. Os comentários históricos transformarão a obra, originalmente de 780 páginas, em um colosso de 2 mil páginas. Além de contextualizar o Mein Kampf, a equipe de pesquisadores vai apontar omissões, mentiras e contradições no discurso de Hitler - um mosaico de meias verdades e mentiras completas, até hoje comuns em narrativas da extrema-direita europeia.
O projeto reabriu na Alemanha feridas que, na verdade, nunca cicatrizaram. Organizações de vítimas do Holocausto se manifestaram contra a publicação do livro, mesmo que numa edição crítica. Em 780 páginas, Hitler enfileira diatribes sobre a culpa dos judeus na derrota dos alemães na Primeira Guerra Mundial - fato que nunca conseguiu deglutir. Defende que a Alemanha errou ao não executar, usando gases venenosos, cerca de 10 mil judeus que seriam "corruptores do povo" e cuja morte teria poupado o sacrifício de milhões de soldados alemães.
Ademais, é uma obra sobre o rancor diante de humilhações impostas pelo Tratado de Versalhes. Ao se render, a Alemanha foi obrigada a assumir integralmente a culpa pela guerra, perdeu boa parte de seus territórios - como porções da Prússia Oriental, para a formação do Estado da Polônia, e a Alsácia e Lorena, territórios que haviam sido conquistados da França na Guerra Franco-Prussiana. Teve ainda de pagar duríssimas indenizações, conviver com a ocupação de parte do país e a desmilitarização total dos territórios à esquerda do Rio Reno.
Mein Kampf foi considerado por muitos críticos como uma obra demente de um radical político até então sem muita importância. No nicho da extrema- direita, todavia, o livro confiou a Hitler uma aura de teórico. Deu algum pedigree ao austríaco de pouco estudo e passado desconhecido. O retorno da bíblia nazista incomoda porque toca na tensão liberdade e dignidade, que nenhum Estado moderno conseguiu conciliar satisfatoriamente.

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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com

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