A ciência ainda tateia para entender o que determina ações repletas de altruísmo, coragem e arrojo em determinadas pessoas. O altruísmo é uma evolução adaptativa de comportamento. No entanto, ser altruísta é condição necessária, mas não única, para se tornar um grande escritor, o qual em potencial precisa também ter uma personalidade que assume riscos. Referimo-nos a Ernest Hemingway (1899-1961) - na foto - um homem que se apropriou de um outro mundo, ou melhor, de vários outros mundos. Era também um momento de época. Foi empolgante e fantástico ao mesmo tempo. Diferenciado, estava disponível quando a coragem o exigia. Arrojado, estava sempre pronto para entrega mexendo com o imaginário dos outros.
Hemingway
foi um dos maiores escritores do século XX, sempre contrário ao
sentimentalismo. Seus contos e romances mostram um homem em busca de si
próprio, diante da dor e do perigo. Varou o mundo.Nos Estados Unidos trabalhou
como articulista em jornais importantes como o “Tribune” de Chicago e no “Star”
de Kansas City, que reputava como o melhor jornal americano. Foi cobrir a
Primeira Guerra Mundial no front da
Itália e foi ferido, ao fim de uma semana, na frente de combate do rio Piave.
Em dezembro de 1921, se estabeleceu e chacoalhou Paris e se recuperava
rapidamente dos danos causados pela guerra. Foi o maior expoente da chamada
geração perdida.
Ao
voltar para os EUA, em 1929, encontrou a pátria sob grande crise, instalou-se
em Key West, na Flórida, escreveu sob inquietação “Adeus às Armas” que envolveu
o nascimento do segundo filho e sob o impacto do suicídio do pai. Voltou à
Europa para cobrir a guerra da Espanha como correspondente, solidário com os
republicanos arrasados pelas tropas de Franco e pelos aviões nazistas. Em
homenagem aos amigos vencidos publicou em 1940 “Por quem os sinos dobram”, um
episódio da Guerra Civil Espanhola. Varejou a África em safáris ferozes e
finalmente optou por Havana.
Seu
amor por Cuba, que se estendeu até 1960, tinha outros ingredientes. Ainda estão
por lá, mesmo quando submetidos ao bolor da decadência, os passos dessa paixão
que, aliás, durou mais que qualquer um de seus quatro casamentos. O quarto 511,
do Hotel Ambos Mundos, na Habana Veja, descortina a baia e o canal pelo qual –
passando pela fortaleza de San Carlos de la Cabaña e pelo castelo dos Três Reis
Magos – pesqueiros saíam para alto-mar. Hemingway ali morou em 1939, no
diminuto quarto. Ele trabalhava em pé, a máquina de escrever Royal apoiada numa
mesinha alta – para não perder a vista da baía.
“Meu daiquiri no La Floridita, meu mojito no
La Bodeguita”, dizia Hemingway. Dizia e cumpria. Os dois bares continuam lá,
reverentes a um frequentador capaz de sorver uma dúzia de doses “sem que
ninguém nunca o tenha visto bêbado”. Fotos, cartuns, no La Bodeguita; no La
Floridita, um busto e o Papa Doble (daiquiri com dose dupla de rum, criado por
ele) lembram o resistente gringo. Cojimar é ainda uma vila de pescadores, a
leste de Havana. Saía a singrar o oceano para a arriscada pesca ao marlim num
mar revolto, no lendário barco Pilar,
de 38 pés. O cenário humano dos amigos pescadores, desafiados pelos açoites
selvagens da Corrente do Golfo, inspirou “O Velho e o Mar” (escrito em 1952),
e, dois anos depois, recebeu o prêmio Nobel de literatura.
As
cores vivas de Paris marcaram Hemingway para sempre. Sua paixão por um Caribe
amigável, embora desafiador, não sabia explicar. Percorrer Havana e arredores é
como folhear os fragmentos de uma densa literatura que resultou em “O Velho e o
Mar”. Cojimar, o porto onde o escritor virava pescador, na faina da caça ao
marlim, suscita competições entre os valentes e achava agradável rivalizar, com
os outros e consigo mesmo, num frenesi de autossuperação. Mas o seu ninho era na
Finca Vigía, uma quinta de 40 mil metros quadrados ao sul de Havana, comprada
em 1940 por 18 mil dólares. Lá, fazia suas viagens efervescentes.
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SERGIO BARRA é médico e
professor
sergiobarra9@gmail.com
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