quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Infringentes são oportunidade para corrigir excessos

Por Fábio Martins de Andrade, no Consultor Jurídico
A história do Supremo Tribunal Federal confunde-se com a história do Brasil, sobretudo a partir da proclamação da República. No início atuou de modo acanhado, em razão da composição de seus membros remanescer do período imperial, o que deu muito trabalho para os advogados da época (especialmente Ruy Barbosa) logo nos primórdios do sistema jurisdicional difuso de controle de constitucionalidade (judicial review). Em seguida, depois de renovada a sua composição, criou-se a doutrina brasileira do habeas corpus, demonstrando o potencial da criatividade jurisprudencial da Suprema Corte.
Desde então, em diferentes momentos, a corte se agiganta expandindo a sua área de atuação e indo mais fundo nos campos que atua, inclusive muitas vezes sobrepondo-se e chocando-se com os demais Poderes da República (Executivo e Legislativo), ou, pelo contrário, retrai-se e limita a sua área de atuação ao mínimo necessário, seja em razão do momento histórico conturbado (como é uma ruptura democrática, por exemplo), seja em razão do seu acomodamento momentâneo em benefício dos demais Poderes da República (eleitos pelo voto majoritário).
A essa tensão natural e dialética existente entre o Poder Judiciário, representado pela palavra final do seu órgão de cúpula (STF), dá-se o nome de ativismo judicial e autocontenção. Ela é inerente e desejável ao regime democrático. Na divisão de funções preconizada por Montesquieu coube ao Poder Judiciário ser a instância competente para resolver os conflitos sociais e entre os demais Poderes da República, não ser eleito (contramajoritário) e, no caso do STF, dar a última palavra quanto ao elevado mister de guardar a Constituição.
O modelo da divisão dos poderes, bem como de indicação do ministro do STF pelo presidente da República, é passível de recorrentes críticas. Mas o fato é que funciona em diferentes países e há séculos. Obviamente sempre é possível ajustar aqui e ali, mas é notável como o sistema misto brasileiro de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos é rico e complexo (se comparado com outros de diferentes países).
Isso também traz vantagens e desvantagens, na medida em que a flexibilidade alcançada pela mistura permite chegar a resultados inéditos e satisfatórios para casos difíceis e, de outro lado, nenhum sistema (norte-americano ou austríaco) foi “importado” em sua inteireza, de modo que, por vezes, falta algum elemento essencial para a maior efetividade das decisões de última instância (STF) junto aos demais órgãos inferiores do Poder Judiciário e dos demais Poderes da República.
Algumas características têm sido cada vez mais observadas na atividade do STF e na sua relação com a sociedade brasileira nos últimos anos. Dentre elas, cabe mencionar, exemplificativamente: a maior proximidade proporcionada pelo interesse direto dos órgãos da mídia em razão da relevância das matérias que decide, o maior protagonismo diante das omissões e inércias, abusos e arbítrios dos Poderes Executivo e Legislativo, e a maior responsabilidade social em razão desse saudável crescimento.
Hoje a população comum fala de alguns ministros do STF como se fossem conhecidos, é francamente permitida a crítica de seus votos (como liberdade de pensamento e expressão), existe acompanhamento diário de sua pauta de julgamentos e dos votos que foram proferidos (sempre importantes para algum setor importante da sociedade) e há constante reverberação pelas redes sociais.
Como tudo não são somente flores, é lamentável o (des)serviço que os órgãos da mídia prestam (ou negam-se a prestar) quando divulgam notícias sobre julgamentos importantes, na medida em que se limita a distinguir de modo maniqueísta e simplório entre o bem e ao mal.
Recentemente assistimos isso ocorrer durante o julgamento do mensalão quando o ministro Joaquim Barbosa (relator), que veio da carreira do Ministério Público e viu no caso uma oportunidade de afirmação junto aos seus pares, assumiu perante o público telespectador a figura de “salvador da pátria”, com expressas referências pelos órgãos de mídia ao seu passado difícil, à sua trajetória como homem comum e, por último, à possibilidade de que pudesse vir a disputar a próxima corrida presidencial. De outro lado, o ministro Ricardo Lewandowski (revisor), magistrado equilibrado e independente há longos anos, viu-se enxovalhado perante a opinião pública nacional porque simplesmente fez o seu trabalho, buscando dar temperança e coibir os excessos que estavam para ser cometidos (e como de fato foram) durante o referido julgamento.
Dá para dizer que foi um caso em que o Tribunal “jogou para a plateia”, como se diz no jargão popular. E isso é perigoso, já que os seus membros não são eleitos e não devem esse tipo de satisfação ao público telespectador, sob pena de se tornar refém dos órgãos da mídia e, consequentemente, dos coronéis que verdadeiramente são e sempre foram os donos do poder no Brasil. Com isso, a democracia perde e a nobre função do tribunal se amesquinha.
Cuidando-se de um órgão colegiado como o STF, composto por onze ministros, todos pensando e votando de maneira independente e diferente, é natural, normal, desejável e saudável que ocorram divergências. Não é normal que haja uma interpelação como a que fez o ministro Joaquim Barbosa contra o ministro Ricardo Lewandowski quando o chamou expressamente de “chicaneiro”. Isso realmente escapa do ambiente de normalidade da Suprema Corte. Esse tipo de tratamento não deve ser dado a ninguém ali dentro, e muito menos pelo Presidente a um par seu. Aliás, Presidente que anteriormente já tinha criado polêmica com os juízes, os jornalistas, os advogados e alguns outros em razão de diferentes declarações desastrosas e incabíveis (que também não condizem com a condição de Presidente do STF).
Por mais inflamados que sejam os argumentos de lado a lado em uma discussão jurídica, digamos, sobre o cabimento ou não dos Embargos Infringentes no Mensalão, é importante que acima e antes de tudo exista o respeito à troca dialética de opiniões antagônicas. Independente de qual seja o voto do Ministro Celso de Mello, a quem cabe desempatar a contenda a essa altura, ainda bem que coube ao decano da corte essa difícil decisão, e ninguém melhor do que ele para toma-la com altivez e independência.
Por último, é auspicioso que o ministro Roberto Barroso tenha integrado a Suprema Corte, que passará a contar com suas ideias originais, seu modo simples (mas não simplista) de ver a vida e sua enorme bagagem como constitucionalista para somar (como efetivamente já vem somando) às discussões do Tribunal. O STF precisava de um ministro com as características dele no atual momento histórico. Sua carreira na corte certamente será coroada como reconhecimento da dedicação que empregará no estudo e elaboração dos seus votos. Não por acaso foi ele quem abriu a divergência em relação ao cabimento dos Embargos Infringentes no Mensalão.
Com isso, proporciona ao STF uma oportunidade ímpar de corrigir os excessos cometidos durante o longo e exaustivo julgamento ocorrido no segundo semestre de 2012, com possíveis aplicações exacerbadas de penas, reconhecimentos de delitos com base em frágeis provas e condenações como respostas ao anseio manifestado pela opinião pública expressada pelos órgãos da mídia.

Fábio Martins de Andrade é advogado, doutor em Direito Público pela UERJ e autor da obra “Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Égua sumano!
Todo texto, impressionante,lá no final conclui sempre elogiando a justiça ao pegar mais leve com o "crimesinho" da corrupção e passar a mão na cabecinha dos "crimisosinhos" tadinhos!!
Viva o país da impunidade!!
Nojo!!!