Irmão José Ricardo Kinsman: ninguém mais identificável com o Colégio Dom Amando do que ele (Foto: Reprodução/TV Tapajós) |
Foia era como o professor, com seu inglês dos Estados Unidos, pronunciava a palavra folha.
Progunta era mais ou menos ouvíamos nós, seus alunos, a pronúncia, num português americanizado, da palavra pergunta.
Impositivo, quase marcial, a voz num timbre entre agudo e anasalado, o professor de quase 1,90 metro de altura, distribuído no corpanzil que se deslocava lentamente pra lá e pra cá, em frente à turma, lançava um olhar faiscante, que percorria a sala inteira. Inteirinha.
Olhava e esperava.
Entre o "tirem uma foia" e a formulação da "primeira progunta", não se passavam mais do de cinco a dez segundos. Não mesmo.
Atarantados, os moleques, aí pela faixa dos 13, 14 anos, abriam as pastas para puxar de lá uma folha.
Uma e apenas uma folha de caderno.
Ia começar aquilo a que chamávamos de provinha, um teste-relâmpago, um teste-surpresa, em geral com apenas duas perguntas e valendo um ou dois pontos.
A provinha era ministrada aos alunos para avaliar se haviam fixado adequadamente as explicações expostas na aula imediatamente anterior.
A molecada só tinha cinco minutos - britanicamente cronometrados - para resolver as duas questões do teste-relâmpago.
Até que o professor ordenava:
- Passem para a frente.
Pronto.
Era a senha.
Todos sabíamos que acabou. Acabou-se a provinha. Cada um que tratasse de passar a sua para o colega da frente, que a passava adiante até chegarem, todas as provinhas, às mãos do professor, que aguardava em frente a cada fileira.
Ele as recolhia mecanicamente. E quem ousasse continuar resolvendo depois do passem para a frente, condenava-se a levar zero vezes zero, divido por zero e menos zero.
Depois disso, eram 45 minutos de aula.
Aula de Química. Com tabela periódica e tudo a que tínhamos direito.
O professor, com seu português carregado de fortíssimo sotaque americano, às vezes se aproximava de qualquer um dos 30 ou 40 moleques da turma e começava a pisar-lhe num dos pés.
Pisava-lhes bem na pontinha de um pé, com intensidade suficiente para que o dono do pé pisado começasse a acusar a dor e divertir, com seus esgares, com suas caretas, o restante da turma.
Todos ríamos, mas pra dentro. Engolíamos o riso, porque fazer barulho era proibido, até mesmo quando o professor aplicava aquele pisãozinho provocativo apenas para descontrair o ambiente.
Centenas e centenas de estudantes do Colégio Dom Amando, o meu Colégio Dom Amando, um dos mais tradicionais de Santarém, passaram dezenas de vezes, durante um ano letivo, pela experiência de "tirar uma foia", escrever a primeira progunta e resolver uma provinha em apenas e tão somente cinco minutos.
Gerações e gerações de estudantes do Colégio Dom Amando, o nosso Colégio Dom Amando, engoliram o riso até mesmo quando o professor tirava sarro de algum dos seus alunos, pisando-lhe num dos pés para testar o seu nível de resistência.
Moleques e molecas daqueles tempos - hoje pais e mães, avôs e avós - alimentavam um respeito reverencial por aquele professor de ares marciais, que impunha respeito e fazia silenciar um colégio inteirinho - literalmente inteirinho, com cerca de 1 mil alunos - apenas com sua presença, sem precisar falar nada. Nadinha.
Era ele aparecer e todos emudecíamos.
Era ele aparecer e todos perdíamos a voz.
Nas primeiras horas da madrugada da última quarta-feira, o professor emudeceu para sempre. E nos deixou mudos, silentes e descrentes por alguns momentos.
José Ricardo Kinsman, o irmão Zé Ricardo, religioso da Congregação dos Irmãos da Santa Cruz, deixou-nos subitamente, aos 80 anos de idade, vítima de um infarto fulminante.
Muitos dos que soubemos que ele se foi perdemos a voz.
E tentamos engolir o choro.
E tentamos segurar as lágrimas.
E tentamos selecionar, entre o turbilhão de lembranças, as que mais nos marcaram em nossa convivência com irmão José Ricardo.
Nos últimos dez anos, encontrei-me três vezes com ele.
A primeira, quando minha mãe faleceu, em 2006.
A segunda, em setembro do ano passado, quando meu pai, Eros Bemerguy, nos deixou.
A terceira, menos de dois meses depois, quando meu tio, Emir Bemerguy, também partiu.
Foi-me marcante vê-lo se aproximar e cumprimentar-me sem dizer nada, mas sorrindo. Apenas sorrindo.
Sorrir, parece, era a exteriorização ao mesmo tempo do consolo e da conformação de um homem que aparentava ser uma fortaleza.
"Ele tinha uma disposição tão grande e estava tão bem, mesmo aos 80 anos, que a gente tinha a impressão de ser eterno", comparou familiar meu, ao saber de sua morte.
"Na semana passada, eu me encontrei com ele caminha na orla de Santarém", lembrou outra.
Uma fortaleza só na aparência.
Uma fortaleza que a finitude implacável da vida faz desabar e esvanecer-se nas brumas da eternidade.
Uma fortaleza que, no entanto, sempre apresentava o sorriso do consolo e da conformação.
O consolo, ele nos oferecia como bálsamo para suportarmos as tormentas da vida.
A conformação, ele a expressava diante da certeza de que certas coisas, como a morte, são inevitáveis. E por serem inevitáveis, convém aproveitar o melhor que a vida poderá nos dar.
Quem conviveu com irmão José Ricardo também fora do ambiente estritamente escolar pôde percebê-lo como homem de um coração enorme e de personalidade cativante, muito embora a missão de ensinar o compelisse a fazer da disciplina e do respeito à hierarquia e à autoridade do professor requisitos de observância incontornável não apenas dentro da escola, mas na vida inteira.
Ele tinha a exata noção de que alunos não devem ser preparados para um vestibular, mas para a vida.
Tinha o preciso discernimento de que os conhecimentos não passam de condimentos de burrice, se não ajudarem a lapidar personalidades e caracteres que confirmem as melhores qualidades do ser humano.
Era a personificação do professor altivo, mas ao mesmo tempo generoso.
José Ricardo Kinsman era de uma família pequena.
Teve apenas um irmão, que lhe deu três sobrinhas.
Mas ele fez de seus alunos a extensão de sua família.
Fez do Colégio Dom Amando a extensão de sua primeira casa, na Filadélfia, e da segunda, em Long Beach, no Estado da Califórnia (EUA).
Foi a Santarém que ele chegou em 1962.
Foi Santarém que ele escolheu, verdadeiramente, para ser a sua casa.
Foi em Santarém que ele estabeleceu os elos entre sua vocação religiosa e a missão de educar.
Foi em Santarém que ele encontrou a terra para semear os seus sonhos e traçar os caminhos para atingi-los.
Nas últimas três ou quatro décadas, ninguém será mais identificável com o Colégio Dom Amando do que o irmão José Ricardo Kinsman.
Nas últimas três ou quatro décadas, ninguém será mais identificável com José Ricardo Kinsman do que o Colégio Dom Amando.
Mais do que lágrimas, ele merece sorrisos.
Mais do que pranto, ele merece o carinho e o abraço imorredouro de nós, seus alunos, que aprendemos com ele os conhecimentos para a vida.
Mais do que choros, ele merece que nos conformemos com a inevitabilidade de certas coisas, como os exemplos atemporais que os mestres legam às gerações que ajudaram a formar.
Mais do que desalentos e desencantos que sua ausência eterna poderá nos causar, ele merece que cultivemos os bons sonhos que ele semeou e não conseguiu colher.
Porque a vida finda, mas as saudades e as boas lembranças, nunca.
Porque a vida de irmão José Ricardo Kinsman findou-se, mas as boas lembranças da convivência com ele jamais findarão.
Jamais fenecerão.
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Em homenagem à memória do irmão José Ricardo Kinsman, o Espaço Aberto manterá apenas esta postagem durante todo o dia de hoje.
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