Por Luiz Flávio Gomes, no Congresso em Foco
O processo (dinâmico e complexo) de brasilianização da nossa sociedade é composto de dois polos opostos: o trágico e o carnavalizado (Empoli: 2007, p. 19 e ss.). Aqui, tudo se mescla (do ponto de vista sanguíneo, até mesmo as raças – Gilberto Freyre). Entre o sistema puro da testemunha anônima (anonimato absoluto da sua identificação, que vem sendo imposto pelos sistemas que “lutam” contra a criminalidade, tratando o réu como “inimigo”) e o da publicidade extrema, o sistema jurídico brasileiro atual ficou no meio do caminho: restrição existe somente em relação ao acesso aos dados qualificadores ou identificadores da testemunha. A eles apenas podem ter acesso o magistrado, a acusação e a defesa. Esse é o sistema pátrio, que evitou os extremos citados (ou seja: que evitou, até aqui, o retrógrado defensismo social antigarantista da moderna política criminal, que começa adotando medidas “excepcionais” para alguns crimes, mas depois todo o sistema é contaminado – veja Moccia, García-Pablos etc. em Oliver C.: 2011, p. 148).
O STF (HC 112.811-SP; HC 90.321-SP), com base na Lei 9.809/99 (lei de proteção às vítimas e testemunhas), vem validando o sigilo da qualificação das testemunhas assim como o Provimento 32/2000, da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que estabeleceu o acesso restrito. Como se vê, no nosso sistema jurídico, não vale o testemunho anônimo nem tampouco a testemunha anônima, posto que o defensor sempre terá acesso aos dados identificadores dela. Do contrário não poderia exercer plenamente a defesa (não poderia alegar eventual suspeição da testemunha), o que seria inconstitucional. Não há constrangimento ilegal nessa providência preservativa dos dados pessoais de quem vai prestar depoimento (diz o STF). Não existe nulidade dessa prova, quando se assegura o acesso a esses dados tanto para a acusação como para a defesa.
Podemos então afirmar que, no sistema jurídico brasileiro, o que existe não é a testemunha anônima, sim, o acesso restrito à sua qualificação (e isso é feito por razões humanitárias, para a preservação da sua vida, integridade física sua e da família etc.). A trágica realidade violenta do país não pode inviabilizar a produção das provas (prejuízo para o direito público da segurança) nem tampouco aniquilar o direito de defesa (preservação da liberdade). A fórmula encontrada foi a do acesso restrito (publicidade restrita) em relação aos dados qualificadores das testemunhas e vítimas. O que não se pode é conceber o testemunho anônimo ou a testemunha (totalmente) anônima (STJ, HC 187.670-SP; HC 51.202-SP; HC 162.727-SP). É possível utilizar o sistema de videoconferência ou mesmo recursos tecnológicos capazes de distorcer sua voz durante o depoimento. Mas a defesa conhece sua identificação (sabe de quem se trata) e pode contraditá-la assim como “interrogá-la” (pedir esclarecimentos sobre pontos relevantes). Isso é que viabiliza a invocação de eventual suspeição da testemunha (por íntima amizade ou inimizade etc.).
O direito de conhecer a identidade das pessoas que testemunham em juízo não está expressamente previsto nos tratados internacionais, mas não há dúvida que ele faz parte do amplo direito de defesa. Quando a defesa não tem direito de “interrogar” a testemunha, há nulidade absoluta (CIDH, caso Castillo Petruzzi). O testemunho anônimo viola o direito de “interrogar” a testemunha em igualdade de condições (com a acusação) assim como o direito da defesa de dispor dos meios adequados para a estruturação da defesa do réu (veja Oliver C.: 2011, p. 152). Pensamento contrário viola todo o espírito da obra beccariana.
Para a mídia e seus julgamentos paralelos, a testemunha “anônima” tem grande valor (mundo do espetáculo, sociedade midiatizada – veja Debord, Lipovetsky, Vargas Llosa). Mas o julgamento da mídia nem sempre encontra eco nos julgamentos judiciais. O juiz Luiz Valdez, no caso Kassab (ex-prefeito de SP), quando o inocentou de irregularidades na contratação da Controlar, não deu nenhuma ressonância às manchetes escandalizadas e escandalizantes do Jornal Nacional, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, que se valeram de uma “testemunha anônima” para afirmar que teria havido corrupção. Pode ter havido corrupção (ou não), o certo é que o julgamento midiático nem sempre tem correspondência com o Estado de direito (seus critérios e seus juízos são fundados nos seus interesses). O “direito” que rege a mídia (tendencialmente carnavalizado) nem sempre tem correspondência com o Estado de direito vigente, que deve sempre ser seguido pelos juízes (e quando isso ocorre marca um ponto o civilizatório processo de “escandinavização”, que é oposto ao processo bárbaro de “brasilianização” das sociedades).
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