terça-feira, 18 de novembro de 2014

A tarefa mais importante


Por ANA DINIZ, jornalista, em seu blog Na rede

Alexandre Grothendieck (na foto) morreu há dois dias. Ele era um cientista – daquela linhagem muito especial de cientistas que não se limitam à sua disciplina, mas alcançam a filosofia por uma via própria, longe da formatação universitária. Um dos mais importantes matemáticos do século XX, que redescobriu sozinho a relação entre a circunferência e seu diâmetro aos 11 anos, num campo de concentração nazista, queria que o esquecessem – mas, como? É dele o trecho que transcrevo a seguir, em tradução livre. Foi escrito para uma conferência em Paris, em junho de 1970, sob o título “A responsabilidade do cientista (savant, no original) no mundo de hoje”. E transcrevo porque se aplica ao Brasil de hoje e porque acredito que essa responsabilidade, se é principalmente dos acadêmicos, é também de todos e cada um neste momento brasileiro:

Questiona-se por todo o mundo os diversos perigos que ameaçam esta ou aquela comunidade humana, grande ou pequena. No ocidente capitalista é o espantalho do “perigo comunista” que ameaçaria a liberdade da pessoa e os valores de uma certa cultura burguesa (...). Às vezes acentua-se o “perigo asiático” (já um dos motivos recorrentes do hitlerismo antes da guerra) ou o “perigo amarelo” que ameaçaria a herança cultural do ocidente. (...) Nos países comunistas invoca-se o “perigo imperialista” que ameaçaria as conquistas do proletariado. Outros “perigos”, por serem mais localizados, não deixam de turvar menos a consciência de uma fração não negligenciável da humanidade, e servem de motivação ou pretextos para muitas injustiças e crueldades: o “perigo negro” na África do Sul ou no sul dos Estados Unidos, o “perigo sionista” nos países árabes ou o “perigo árabe” em Israel, para citar alguns.

O observador desse novelo de “perigos” complementares, aparentemente bem específicos e mutuamente contraditórios, não pode deixar de ser atingido por sua extraordinária semelhança de fundo, e a identidade deveria dizer-lhe: em cada caso é sentida e denunciada como “perigo” a existência ou expansão (efetiva ou imaginada) de um grupo humano percebido como diferente do grupo de origem, seja esta distinção de ordem religiosa, linguística, étnica (“racial”) ou econômica, ou política (i. e. concernente à organização da sociedade).

(...)

Pode-se chamar, por oposição à tendência “atávica” que acabamos de descrever, a tendência “racional” ou “ética” nas relações entre os grupos. Na sua forma mais evoluída, ela resulta no conceito de solidariedade essencial entre os seres humanos, quaisquer que sejam os grupos a que pertençam, conceito que pode ser encontrado já em antigos pensadores, anteriores à nossa era (p. ex. Lao Tse, Buda, e outros). O aparecimento dessa tendência “racional”, preliminar indispensável à formação de sociedades civilizadas, deve sem dúvida ser vista (juntamente com a linguagem) como a conquista mais importante do espírito humano – conquista que está longe de ser completa, como acabamos de ver. Deveria ser possível, numa abordagem dessas, ver a história da humanidade como a história da luta até agora incerta entre essas duas tendências opostas nas relações entre os grupos humanos.

(...)

Por esta razão, a tarefa mais importante e a mais nobre que se coloca para os homens é a liquidação deste reflexo ancestral, e a plena realização da solidariedade inelutável que liga entre si todos os homens, quaisquer que sejam os grupos humanos aos quais pertençam.

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Para saber mais sobre o pensamento (ou, quem sabe!, a matemática) de Grothendieck, procurar por Grothendieck circle na internet. Lá estão depositados seus principais escritos, entre os quais a conferência de onde foram retirados os trechos transcritos.

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