segunda-feira, 30 de julho de 2012
Uma filosofia para espíritos livres
Quando se lê um filósofo, não é raro que se pense logo em um indivíduo que vive encastelado na academia ou numa sala com pouca luz olhando para o horizonte. Não procede. Li, pela segunda vez, “Ecce Homo”, de Friedrich Nietzsche (1844-1900), essa obra maior do egocentrismo humano e aparentemente fragmentária, que adquire unidade e vitalidade orgânica ao manejar o aforismo. A filosofia de Nietzsche foi, não raro, tomada como uma espécie de “loja de conveniência”. Passando ao largo de seus escritos, muitos recorreram à obra do filósofo de modo fortuito ou ocasional sem explorar a profundidade de suas ideias nem refazer os movimentos internos de suas ponderações.
Nietzsche é tão influente como controverso. Viveu sempre sobre a navalha da interpretação. Tudo nele, na realidade, tinha a forma de um “eu” muito forte. Seu vigoroso espírito crítico dirigiu-se especialmente contra a ética cristã. Se para ela o bom é o humilde, o pacífico, o maleável, e o mau é o forte, o enérgico e o altivo, para Nietzsche essa é a moralidade de um mundo dividido entre senhores e escravos. Trocando em miúdos e esculpindo o pensamento de Nietzsche a grosso modo: é bom o que vem da força, é mau o que vem da fraqueza.
Em “Ecce Homo” ele diz: “Mas ainda em outro sentido escolhi para mim a palavra imoralista como distintivo, como distinção; eu tenho orgulho de possuir essa palavra, que me distingue de toda a humanidade”. Ademais, Nietzsche procurou trazer à tona o subsolo indelienável e infraconsciente do próprio animal-homem, mostrando que há, em nós, um material instintivo inflamável capaz de condicionar nosso modo de agir, sentir e pensar. Mas, sem considerar o propósito de sua investigação, muitos fizeram dele um defensor de impulsos desgarrados e incontidos. A função que a filosofia nietzschiana desempenhou, foi muitas vezes, a de afirmar toda e qualquer necessidade de extravasamento: toda vez que se quis defender o excesso e o êxtase foi a imagem de um Nietzsche dionisíaco (símbolo da paixão vital e da intuição) que se procurou reviver.
“Ecce Homo. De como a gente se torna o que a gente é” - é um dos últimos - o último vulto - suspiros de Nietzsche antes do abismo. “Ecce Homo” é uma obra em sangue, o sumo mais autêntico de um “eu” genial, e jamais deixou de se exprimir autobiograficamente, de buscar em sua própria vida a matéria-prima para a sua obra. Ou alguém é capaz de ler o “Zaratustra” sem pensar na biografia de Nietzsche? Ou por acaso muitos dos aforismos de Nietzsche não são confissões em três linhas? Mesmo quando falava dos outros, sem usar o “eu” - caso das “Considerações extemporâneas” -, Nietzsche chega à conclusão de que falava “apenas de mim mesmo”.
O “Ecce Homo” é - portanto - o último elo de uma cadeia de observações acerca de si mesmo. Nele, conforme Freud, Nietzsche alcançou um grau de introspecção anímica que jamais foi alcançado por alguém e que dificilmente alguém voltará alcançar um dia. E nada mais estranho ao espírito nietzschiano que reviver ídolos ou cristalizar imagens. Em nosso entender, para compreender o sentido e o alcance de seu pensamento, cumpre levar em conta o conjunto de sua obra e os diferentes momentos de seu itinerário intelectual.
Nietzsche declara que seu retrato surgirá da proclamação da diferença existente entre sua própria grandeza e a pequenez de sua época. Chama atenção para a “guerra espiritual” entre as naturezas fracas e decadentes, de um lado, e as naturezas fortes, as vidas-que-deram-certo, de outro. E preparar essa “grande política”, era a tarefa do “Ecce Homo”. “Eis o homem”, pois.
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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com
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