Sabem o Paulo Silber?
Pois é.
Paulo Silber Gama Alves.
Uma testemunha ocular do duelo do século.
Ou de todos os séculos.
Paulo Silber.
Testemunha ocular do confronto, da saga que reuniu Saroquinha x Maciste (clique aqui, aqui e aqui).
Pois é.
O Furlani's Bar, ali da avenida João Paulo II, vai fechar.
Silber, em sua página no Facebook, convocou a galera para contar poucas e boas, boas e poucas ocorridas no Furlani'.
Ele próprio começou a contar.
E contou uma que é impagável.
Intitula-se O jato da morte.
Os personagens são reais, muito embora a história seja quase inacreditável.
O poster já sabia dessa história, real, há muito tempo.
E há muito tempo que a vem contando a várias pessoas.
Quase ninguém acredita.
Mas é verdade.
Silber o confirma.
Leiam.
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A mesa da diretoria estava lotada. O Furlani’s Bar, na hora neutra da madrugada, lembrava um ninho de formigas de fogo. O próprio Furlani, sempre sereno, era o mais aceso, o carisma elevado à máxima potência. Dona Emilce, aplicada em distribuir gentilezas, flutuava entre os clientes com a suavidade de sempre.
Apolo parecia vigilante, mas nem tanto. Acho que ele aprendera a deixar as orelhas em pé, como se estivesse alerta, o safadinho, enquanto dormia embaixo da mesa, alheio ao burburinho, sonhando com o Paraíso dos Cachorros, onde hoje repousa.
Na cozinha, Dona Antônia suava mais que menino no fim da febre, para dar conta de tantos quibes, sopas e tiragostos diversos. Quase pusera farofa na tábua de frios e cubos de gelo no caldo de feijão, mas percebera a tempo.
No salão, Raimundinho irritava uns e divertia outros, mas no final agradava a todos com palhaçadas nonsense e a cara de anjo sacana imprópria aos garçons.
- Fazer amor de madrugadaaaaaa...
Uma morena de boca carnuda, até jeitosinha mas sem a menor vocação para o microfone (não aquele!), berrava feito ambulância no engarrafamento, pervertendo a letra, assassinando a melodia e arrependendo Paula Toller de ter nascido.
- Em cima da pia, debaixo da escadaaaaaaa...
Na mesa da diretoria, ninguém prestava atenção à gralha do karaoquê. Ríamos, mas ríamos muito. Saborosas risadas. Essa era a nossa música: solos e coros de gargalhadas. Sonoras vibrações de humor, temperadas por dezenas de cervejas geladíssimas, conservadas “no cu da foca”, como se dizia.
L., com seu jeito afobado, acelerado e inquieto, era uma espécie de maestro nesses encontros. Regia as explosões de risos como ninguém, contando histórias verídicas, mas implausíveis, como aquela em que cansou da aparência desleixada e recebeu o espírito de Vanusa. “Hoje, eu vou mudar”, decidiu. Vestiu a beca domingueira, passou uma camada de Trim nos cabelos e enforcou-se numa gravata para impressionar os amigos no trabalho e sentir-se mais bonito. Mas foi fulminado pela própria mãe, ao pedir-lhe a bênção antes de sair de casa:
- Meu filho, você está ridículo...
A gargalhada explodia em alto e bom som. A gente perdia o fôlego de tanto rir, mas L. ainda completava, quase cruel, com voz de resignado:
- Mamãe não sabe mentir...
A gente se dobrava, sufocava, engasgava, havia até quem caísse, dominado por aquelas histórias que enchiam o Furlani’s de alegria.
Naquela noite, porém, L. estava diferente. Chegou discretamente, não jogou o crachá na mesa, cumprimentou-nos sem o estardalhaço de sempre e juntou-se ao grupo sem cutucar ninguém, como se fôssemos um coral de Igreja e não os tresloucados colegas de bar.
Eu já contara duas mentiras. F. relatara os tropeços da infância. Dr V. recitara as piadas infames de sempre. G. avacalhara-se com picardia. AC desfiara seu rosário de ironias. Até o Furlani já fizera um chiste – e L. apenas sorria, quase forçado, como se a felicidade doesse.
Foi quando chegou JB, com a sexta dose na cabeça, vestiu a roupa do cinismo e nos serviu o hilariante Tratado da Feiúra, que tinha nele o início, o fim e o meio.
- Eu não nasci feio, é sério! – começou JB, já arrancando as primeiras risadas. – Fui piorando com o passar dos anos. Com o passar dos anos por cima de mim. Por cima da minha cara... – completava.
A essa altura, metade do bar já prestava atenção na história dele e nas nossas gargalhadas. JB se animava com a platéia e prosseguia:
– Quando a mamãe me teve, eu era apenas um bebê esquisito. Mas muito esquisito. Tão esquisito, que o médico, quando me deu a palmada, em vez de acertar a bunda, achatou o meu nariz. Aí, sim, eu comecei a ficar feio.
E prosseguia, zombando de si mesmo, para a alegria de todos:
- Até virar esse monstro que vos fala, a reencarnação de Quasímodo, a Peste em forma de gente, o cochilo de Deus – ele delirava, enquanto a gente se contorcia de tanto rir, com todos os efeitos sonoros das boas gargalhadas.
- Huaaaaa huahuahua!
- Eeeehuehuehuehueee!
- Blearuuuurgh!
- Queeeeee cacacacacaaaaaaa!
Epa! Peralá! “Blearuuuurgh”?! Aquela onomatopeia esquisita, gutural, rouca, vindo de alguma profundeza, quase passou despercebida. Que diabo é “blearuuuurgh”?, eu me perguntava.
A explicação veio a jato, abrupta como a lava de um vulcão.
- Bleeeeaaarrrrruuuuaaauuurrrrghhhh!
Durou cinco segundos o intervalo entre o primeiro aviso e a inevitável consequência. Apenas o tempo suficiente para que o estômago indômito assumisse o comando do corpo de L., impondo aos músculos do tórax e do abdômen um esforço supremo que quase rompe o esôfago.
Tempo bastante para a materialização do mal-estar do meu amigo, jorrado sobre a mesa da diretoria, transformado naquele mar de incômodos viscerais que agora emergiam junto a substâncias fecaloides de odor insuportável, tisnadas por ácidos intestinais e corrompidas por uma pasta amarelo-esverdeada. Uma pororoca de secreções que o revoltado estômago cuspiu na forma de um mingau de saliva, bile e sucos gástricos.
Estava explicado, com estrondo, o silencioso sofrimento de L. O vômito jorrou de uma só vez, mas era tanto, mas tanto, que não parou de fluir enquanto L., em agonia, girava a cabeça da esquerda para a direita, quase em 360 graus, distribuindo o produto do seu sofrimento na direção de todos que estávamos sentados à mesa-redonda da diretoria.
Dr. V. recebera a maior porção, com direito a fragmentos não mastigados de comida que grudaram no seu pescoço. Foi dele a única reação enérgica ao terrível acidente. Levantou-se indignado, cuspiu alguns impropérios e foi embora. Nós, os demais, mesmo incomodados e nauseados, perdoamos L. porque sabíamos, por experiências passadas (não tão furiosas como aquela), dos seus problemas agudos de refluxo gastroesofágico que o obrigavam a manter antieméticos sempre ao alcance da mão.
Naquela noite, porém, não deu tempo de impedir, e o vômito jorrou farto, maculando as roupas dos amigos e magoando Dr. V., de tal maneira que, uma semana depois, ele não voltara ao Furlani’s. Na verdade, jamais voltaria. Dr. V. morreu, fulminado por um derrame, três dias depois do episódio.
Por causa disso, durante muito tempo, passamos a tomar mais cuidado ao desfrutarmos da companhia de L., guardando dele alguns centímetros a mais de distância. Qual soluço era motivo de perplexidade. Um engulho poderia causar pânico.
Para nós, com assento na mesa-redonda da diretoria do Furlani’s, era quase certo, praticamente indubitável, embora ninguém ousasse dizer, que a morte de Dr. V. não fora provocada por um Acidente Vascular Cerebral (A.V.C.) como se supunha. E sim por um V.A.C. (Vômito Abundante e Certeiro), o jato letal vertido pelo rebelde estômago do nosso bom e hilariante amigo L.
4 comentários:
Nossa, que bateu uma baita saudade, ah bateu. Espero ansiosa Paulo Silber contando o histórico encontro de Furlanis com seu sósia, o editor PB
Rita Soares
Ainda bem que esse encontro - talvez histórico por ser único - não rendeu nenhuma história.
Hehehe.
Abs.
quem disse que não rendeu? aguarde...
Que cronista de mancheia! Se esse encontro for contado (dos sósias) vertido pela mesma lavra ou pela tua pena, PB, podemos esperar por outra bela crônica. Se eu fosse você já declinaria a primeira versão, que eh a que fica.
Abc
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