sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Maciste x Saroquinha (final): I Love to loooooove...

Por PAULO SILBER (leia a Parte 1 e a Parte 2)

No exato instante em que Maciste beijou o chão do picadeiro, fulminado por Saroquinha, humilhado pelo calcanhar no cóccix, sua alma foi cortada em cubos feito cação ensopado e acorrentado, cada pedaço dela, às panturrilhas tufadas de um ascensorista do Inferno (Deus sabe como o Lar do Demônio é repleto de batatudos).
Marapanim estremeceu.
Na Escala Richter da Zona do Salgado, cujo parâmetro é o beiço dos velhos desdentados e a medida de intensidade a profusão de suas babas, o terrae motus das emoções alcançou o pico naquela noite nojenta – eternizada nos anais da história municipal como A Batalha das Gamelas.
A cidade fora encoberta por uma nuvem de agonia, subjugada por ostensivos relâmpagos de iniquidade, dominada por trovoadas de perversões. O espírito zombeteiro do Alexandre, de A Viagem, fugiu da trama de Ivani Ribeiro e tomou como missão de vida após a morte virar eterno encosto daquela gente de cabelos lisos e olhos oblongos.
Destinos consagrados se rebarbaram. A vida pacata abriu um abismo em seu próprio umbigo. O Criador, que não é de ferro, deixou de lado as criaturas para brincar de estátua com os apóstolos. Foi o dia mais estranho da minha vida – e eu nem conhecia o Vadinho.
Enquanto a multidão sedenta de vingança cercava o corpo de Maciste e Saroquinha fugia no rumo das sombras, um raio espatifou o cume da Igreja Matriz. Na calçada, damas da noite faziam fila para converter-se ao Sagrado Coração. Estava lá até a mãe do Pinto Insosso, que era da zona havia décadas, a gente sabia, mas respeitava aquele filho da puta bom de baralho.
Velhas carolas viraram devassas. Drogados sem rumo ofereceram a face à palmatória. Vacas de pasto e presépio, desnorteadas e indômitas, verteram das tetas uma mistura empapada de Leite Moça com bolacha Maria e creme de leite, depois cagaram tabletes de margarina Primor, para expelir em tosses espasmódicas uma quarta de queijo ralado e oito litros de qualhada. Chovia beijos-de-moça fabricados pelo Serapião, pai de Rosivalda, a menina mais gostosa da cidade, cujos lábios grossos, os minúsculos pelos dourados nas coxas, a saliva saliente na ponta da língua, as gotas suicidas de suor que deslizavam por suas curvas em ritmo acelerado da nuca ao bumbum, tudo isso, acreditávamos nós, estava de alguma forma entre os ingredientes daquele beijo-de-moça que derretia no céu da boca como se nem alimento fosse, mas bálsamo, hóstia doce, o corpo de Cristo não, porque seria heresia dizer isso – mas sim o corpo de Rosivalda.
Empanturradas de beijos-de-moça, meninas ingênuas seduziram professores patetas em rituais de iniciação precoce transcritos do Livro de São Cipriano da Capa Preta.
Um vento forte e empoeirado zarpou detrás da Capela da Barraca e varou pela Rio Branco supurando axilas antes sadias e curando as chagas fétidas do mendigo Pede-Mil, transformado de Fera em Boto.
Todas as contradições recenderam e misturou-se no ar o vapor fedorento dos dissimulados. Lágrimas sinceras de quem nunca chorou caíram fartas, afogando as virtudes dos magnânimos, mas fertilizando de delicadeza o jeito rude dos mal-educados.
Pedaços do corpo de Maciste jaziam no pátio do Sesp, sobre os ladrilhos vermelhos. Raimundo Diabo Solto os transportara, sem que lhe tivessem ordenado. Foram levados à toa, porque morto não ressuscita senão por milagre, e por mais morto que estivesse, de morte matada e não morrida, não merecia aquele quebra-cabeça de estorvo reunir os cacos, colar os membros, encaixar as articulações e levantar, sacodir a poeira e andar de novo, o desgraçado.
Ainda no circo, uma hora antes, sob o impacto da glória acesa por Saroquinha e servida em fogo-fátuo, Sérgio teve trabalho pra me tirar do transe e convencer Cara de Boneca de que era a maior sujeira ficar ali, aplaudindo o assassino e dizendo bem-feito à vítima. Eu não duvido de que foi mesmo o meu irmão, na sua lacônica sensatez, quem convenceu Saroquinha, com o único argumento possível, a se mandar dali:
- Vaza!
Sérgio murmurou no pé do ouvido de Saroquinha, com a ênfase que cabe num sussurro, eu sei que ouvi, mas ele nega até hoje, fugindo da cumplicidade, apagando com a borracha da discrição (molhada pela gota de cuspe da cautela) a sua própria importância na História.
Na euforia da vitória sobre o falido Sansão que os amedrontara, os homens da platéia, covardes de outrora, agora despedaçavam Maciste, seus trajes ridículos, as peles enrugadas do corpo, os genitais menores do que prometia, músculos de todo o mapa humano, do esfíncter, do abdôme, extensores e flexores, soleus e pereneus, períneo e glúteos, a coleção de juntas, a reunião de cartilagens.
Aquela pamonha, já sem a cabeça de ovo, foi destrinchada como um frango, dilacerada com requintes de crueldade, até virar um entulho de banha, ossos, órgãos, tecidos, tripas, amontoados diante de urubus famintos em êxtase, como se fosse o banquete canibal, quem sabe, pré-requisito para chegar à Festa de Babette. Foi triturada ali - com todo tipo de instrumento que chegasse às mãos, dos espinhos de tucumãzeiros a trancas pesadas de portas largas - a última réstia de altivez daquele ser agora amorfo, um verme a mais para alimentar a terra úmida da cidade.
Diz a lenda que Maciste, em questão de segundos, foi fatiado em 12 mil pedaços depois de apanhar até a morte do nosso heroi-assassino Saroquinha. Um pedaço para cada habitante do município. Eu não acredito, o Dieese não mediu, o episódio não inspirou Gil e nem o IBGE confirmou.
A multidão desmanchou o antigo gigante até quedar-se frouxa, murcha, farta, morta de cansaço, como a musa de Tatuagem. A duas quadras dali, o grande filósofo marapaniense De Cotia registrou a lápis num papel de embrulho, enigmático como convinha a um sábio: “Quem presta já não presta. Quem não presta... que prestígio pode ter?”
Eu posso até estar inventando, mas juro pela bênção do Padre Edmundo Igreja, homem santo que me deu um cascudo porque dancei ao hino da Padroeira quando o momento era pra estar contrito, eu juro que vi a cidade inteira, da Alemanha até o quintal do Papa-Gó, ser possuída por episódios inverossímeis, mas absolutamente verdadeiros.
Xavico e Zazá, o mais antigo casal de dançarinos de carimbó, e bota antigo nisso, cujo currículo ostentava apresentação na Santa Ceia, protagonizaram um frenesi assustador, arrastando os tamancos sem parar por mais de 24 horas. Mesmo dançando e rindo, Zazá chorava:
- Ai, minha Nossa Senhoooooora!
Depois berrava firme, trocando os eles pelos erres para chamar os muitos filhos batizados com aquela letra estúpida no meio do nome, que ela não sabia como dizer, ou talvez até soubesse, mas recusava-se a declamar sons guturais, mais apropriados ao grunhir dos porcos imundos, ao ronco dos caititus fedorentos, ao coaxar de repugnantes sapos, ao arrulho nojento dos pombos, ao grasnar patife dos corvos. A ela, mais valia o prazer de pressionar a ponta da língua no palato, tremê-la atrás dos dentes, para surfar os tímpanos dos filhos perdidos no mundo:
- Wirrrrrrrrrrrdes! Terrrrrrrrrrrrrrrma!
Wildes e Telma viram as tapioquinhas levantarem voo. Deram cachuletas coletivas nas imensas orelhas do Raiquinaique. Assumiram a imagem e semelhança das serpentes enquanto os cabelos brancos dos anciãos preencherem o chão da barbearia do Cheira-Ova.
Correu à boca pequena, nem tinha uma semana ainda da tragédia no Grand Circo Arlequim, que um repórter estrangeiro hospedara-se na casa do Pedro Pé-de-Anjo. O próprio Pedro, após advertir sobre a gravidade do segredo, encarregou-se de contar pra todo mundo. Quando alguém que ele não alcançara na inconfidência se dispunha a checar a história com a própria fonte, o Pé-de-Anjo fingia indignação:
- Puta que pariu! Esse povo é fofoqueiro!
Nunca se confirmou o caso, mas diz que a Tia Cotinha, antes de morrer dançando no Bosquinho, sob o olhar atônito da mamãe, balbuciou no ouvido de Dona Mena as seguintes palavras:
- É... Ou... Nil... Nil... Nil...
Mamãe, assustada, lembrou na hora que o sétimo filho, aquele que ela pariu na escada, em Duque de Caxias, estudava inglês no Aslan. A quase defunta gritava, Dona Mena se esforçava para traduzir:
- Nil... Nil... Nil - Cotinha balbuciava.
- Nil uórqui? – mamãe chutava.
Há quem jure até hoje (o Cu-da-Lulu, por exemplo) que o repórter estrangeiro esteve mesmo em Marapanim, para checar a história de Maciste e Saroquinha. Depois sumiu, como um turu na goela, como o próprio Saroquinha, entocado em Gurijubal, onde ninguém jamais ousou entrar, nem policiais nem bandidos, nem mesmo em sonhos, jamais iludidos.
Assim se passaram mais de 30 anos. Saroquinha, hoje vovô, permanece isolado na sua própria Macondo, onde fabrica paçoca de castanha de caju socada no pilão com gergilim e coco ralado, embora gente graúda garanta que a matéria-prima são os restos mortais de Maciste, guardados como relíquias de um tempo em que as diferenças entre dois homens se resolviam mesmo era na porrada.
A tempestade de beijos-de-moça durou até o dia seguinte, esfarelando os acontecimentos no crivo da história. Era noite de festa, aquela. Marapanim voltara à rotina. Criou~se um pacto de silêncio acerca da Guerra das Gamelas
No Clube de Mães, horas depois,Tina Charles berrava em 78 rotações, a voz mais anasalada do que de costume, convidando a gente a dobrar os braços e mexê-los para cima e para baixo, como uma galinha louca, enquanto os pés se tocavam nos calcanhares.

I love to love
But my baby just loves to dance….


Eu bolaria depois um plano infalível, mas que nunca deu certo, para comer a Rosivalda, filha do Serapião, aquele que tinha guardado a sete-chaves o segredo do beijo-de-moça, que chovera na véspera e agora era vendido pela suculenta filha na frente da sede amarela com beirais rosados, depois de paciificar, pelo sabor e pelo mistério, uma cidade inteira..

But my baby just loves to dance…

Posicionei-me entre o banheiro e a cozinha do Clube de Mães, lá atrás da bananeira, perto da árvore de fruta-pão, junto à cerca do Seu Poré.

He wants to dance
He loves to dance
he’s got to dance


Ela me olhou com aquele jeito de Capitu, indecifrável, depois sobrevoou o salão sentada sobre o vapor do próprio corpo perfumado, até sumir da minha vista, na direção do Sérgio, que cutucava as unhas perto da nave do som.

I love to looooooooove…

Eu não comi a Rosivalda. Nem descobri o segredo do beijo-de-moça. Mas diz que o Sérgio comeu – não sei se o doce mágico, a mulher do bumbum perfeito ou os dois, um de cada vez, é claro.
O Sérgio nega, como sempre.
Quando eu insisto, ele puxa minha curiosidade com aquele jeito de falar baixinho o que a gente pensa que vai ser revelado em bom som. Então me sacaneia, prevalecendo-se da condição irrevogável de irmão mais velho e deixando no ar a certeza de que faturou a gostosa:
- Nessa cidade, não tem homem para bater em mim – ele sustenta.
- Ai, ai, ai, ai, ai...- eu respondo.
Tinha Charles completa:

I Love to looooove…
But my baby
just loves to dance…

3 comentários:

Anônimo disse...

Já temos outro motivo para conhecer Marapanim: a Rosilvalda

Anônimo disse...

égua, sumanu! põe de lado um pouco essa diliciosa tar de erudição, pra nós, os caboco de marapa, entendê meió.
Óia, cuidado, tão se juntando o Saroquinha, o Pinto Enssosso e os fio da Tia Zazá pra ti dá um corretivo.
Você é demais.

Anônimo disse...

Meu amigo Paulo Silbert é o nosso James Joyce. Estou de alma lavada. Nunca mais tinha lido por estas plagas amazônicas um texto tão delicioso.

Carlos Mendes