Para rir do poder, um talento se alevantou: Mario Monicelli. No centenário de nascimento desse diretor de cinema que mesclou drama e comédia para combater a hipocrisia social. Esse talento acordou cedo para o cinema. Na Roma em que nasceu, em 15 de maio de 1915, o garoto perseguia não apenas os sucessos de bilheteria, mas as breves farsas cômicas que antecediam as grandes projeções. Para ele, Buster Keaton era um rei renascido a cada queda, capaz de entender a inconstância das coisas. Ah, sim, Keaton: era um grande ator cômico do passado remoto que jamais sorria.
Na verdade, Monicelli procurou pelo comediante incansavelmente, até mesmo naquela sua toscana Viareggio de adoção, para onde a família se mudaria nos difíceis anos de ascensão do fascismo. Filho do jornalista, crítico teatral e dramaturgo Tommaso, o menino aprenderia a rir para sobreviver. Mais que isso, seria um cômico por toda a longa vida dentro do cinema, interrompida quando, detectado seu câncer na próstata, jogou-se da janela do Hospital San Giovanni, em 2010, aos 95 anos. Além do talento, havia em Monicelli a sabedoria de Keaton, a seriedade no absurdo, a risada na dor.
Ademais, sonhar é fazer e ele mesmo iniciaria um gênero cômico. De designação inicialmente pejorativa criada por americanos que viram no país uma fonte de comicidade, a comédia à italiana resultaria em movimento sólido por quase três décadas. Tinha grande admiração pelo modo quase invisível com que Roberto Rosselini conduzia os filmes. Monicelli fez nascer a comédia em 1958, ao parodiar um filme francês de assalto. Os Eternos Desconhecidos seria sua novidade estrepitosa nascida de coisas antigas, uma refinada mescla das farsas físicas à moda de Keaton com os mandamentos da comédia da arte. No filme quase todo encenado na rua, à moda neorrealista, Monicelli se revelava impiedoso em relação à miséria humana. Pela primeira vez em uma comédia cinematográfica surgia um morto - e em todos os filmes de Monicelli, a partir deste, haveria, como regra, pelo menos um deles.
O talentoso Vittorio Gassman, que protagonizaria seu clássico O Incrível Exército de Brancaleone, ali nascia para a comédia como um boxeur fracassado. Cláudia Cardinale, aos 17 anos, estreava no cinema do país como a irmã oprimida de um siciliano. Marcello Mastroianni trocava as fraldas de um bebê cuja mãe permanecia encarcerada. O maior entre os pequenos velhacos era Totó, que ensinava àqueles ingênuos miseráveis, por meio de uma geladeira, como arrombar cofres, em uma metáfora para a transmissão de seu poder cômico a uma nova geração de atores.
Trabalhar é realizar, foi um diretor de costumes cuja revolução foi o anticonformismo e a ironia exercida ao limite do grotesco. Era único e como diretor, variado a ponto de não construir um modelo. Em Os Companheiros, de 1963, achou que foi injustamente esquecido no mesmo festival que consagraria Oito e Meio, ele veria com brilhos as primeiras greves do Piemonte, sem se esquecer, contudo, do desastre proporcionado por uma irresponsável liderança de trabalhadores representada, no filme, por Mastroianni - e o ator em repetidas ocasiões lamentaria a marginalidade dessa obra em relação às grandes do cinema.
Um filme como Os Companheiros (no vídeo, uma cena) é eternamente atual, isso é inegável. Hoje, na Itália, os operários não trabalham 13 horas por dia, têm dois carros e quatro televisores e, pasmem, muitos votaram em Berlusconi e Renzi. Mas, por lá, há outros novos pobres que vivem como os operários do filme, desempenhando serviços de manhã à noite por trocados, sem direitos, sem automóveis, sem casa, a exemplo dos imigrantes, sobretudo africanos e árabes. Em sua homenagem foram restaurados vários de seus filmes. Monicelli, extraordinariamente esteve no limite da comédia humana, política e social. Enxergava o cômico, como arma de contestação raramente vista. Um grande iconoclasta que procurava o cotidiano do absurdo.
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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com
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