Por ANA DINIZ, em seu blog Na rede
Cria corvos e eles te arrancarão os olhos
(Provérbio espanhol)
Há um punhado de obras de arte que detesto. Nem por isso lhes nego a condição de arte ou a liberdade de seus autores em produzi-las. Nego-me eu a ler, ver, assistir, comentar. Há milhares de pessoas que, como eu, também não gostam e há milhares que pensam de forma diferente. Mas liberdade é isso: poder escolher.
Raramente aprecio uma sátira. Para mim, ela está perto demais da grosseria. Também, pela mesma razão, não gosto do “Zorra Total”. Então, desligo a tevê, fecho a revista, desconecto o assunto. O humor nu – nos sentidos literal e figurado – não é a praia para onde eu vou.
A sátira frequentemente transborda do terreno do humor para entrar no da ofensa pura e simples. Esse limite é cinzento: o que eu considero limite não é o mesmo que o outro considera. O deboche muitas vezes beira a crueldade. Discutir a intenção do autor é bobagem: o dano causado geralmente é irremediável para o atingido.
Mesmo assim, ser ofendido não gera um direito de vida ou morte sobre o ofensor. Não depois que se estabeleceram princípios mundiais de convivência e direitos humanos.
E aqui chegamos ao cerne da questão: o que fazer quando um grupo humano decide não aceitar esses princípios e, pior, tenta estabelecer o seu ponto de vista sobre todos os demais?
Em termos de arte, chamamos isso de censura. Em termos políticos, de extremismo. Em termos sociais, de radicalismo. Sabemos como combater a censura, o extremismo, o radicalismo: pactuamos os limites na forma de leis que todos devem respeitar. E discutimos esses limites o tempo todo, para alterá-los por meio de novos pactos. Usamos para isso ferramentas legais: o processo contra o autor de algo que nos ofende gera decisões que muitas vezes fixam novos limites para o que se pode tolerar.
Mas, em termos religiosos, não há pactos: há dogmas. Dogmas não se discutem: acredita-se neles ou não. Em clima de liberdade, um dogma não deve se sobrepor a outro, e se um cidadão decide acreditar neste, e não naquele, ou simplesmente não acreditar em nenhum, o religioso pode tentar convertê-lo e, se não o conseguir, rezar pela sua alma. Não pode coagi-lo e, muito menos, matá-lo. E esse é o problema do fundamentalismo religioso, que matou Jesus Cristo porque negou a divindade de César, que dizimara, antes de Cristo, os zoroastristas e, depois dele, continua matando até hoje. O fundamentalismo é mortal. E é tentador: o nome de Deus é um formidável instrumento de poder. Alguns milhões de mártires, de todas as religiões, atestam até onde pode ir um crente desafiado.
Hoje, um grupo humano está retomando o fundamentalismo extremo.
O atentado de Paris é café pequeno perto do que esse grupo está fazendo na Nigéria, na Somália, no Iraque e na Síria, nestes dois últimos países sob a fachada de Estado Islâmico. O massacre sobre muçulmanos xiitas, assírios, cristãos armênios e yazidis (estes estão sendo exterminados) já conta milhares e milhares de mortos. Centenas de milhares de mulheres de todas as idades estão sendo transformadas em servas ou, pior, coisas: não dispõem nem de seu corpo, nem de seu espírito.
E nós? Nós, olhamos horrorizados, assinamos petições, passamos a conta para as potências senhoras da guerra e nos sentimos a salvo. Mas – estamos realmente a salvo?
Dos jihadistas, provavelmente sim. Mas estamos nos esquecendo de olhar em torno e ver aqueles que, de paletó e gravata, constroem os ninhos dos corvos que nos arrancarão os olhos. Porque o fundamentalismo não nasce da noite para o dia, nem de uma iluminação profética. Ele se alimenta da intolerância cotidiana, do dia a dia da ofensa, da falta de limites, fermenta no ódio e na ambição. E toma forma nas pessoas que usam o nome de Deus para canalizar a intolerância contra os demais, demonizando os adversários – e o demônio deve ser combatido, não é mesmo? E seus servos eliminados ou reduzidos à sujeição total.
Tem-se falado em segunda guerra fria e coisa e tal. Mas a História não anda em círculos, ela traça espirais ascendentes ou descendentes, cujas curvas são semelhantes entre si, mas nunca iguais. O drama do século XX foi o antagonismo entre diferentes ideologias; o do século XXI será o religioso, se permitirmos que os corvos se criem.
2 comentários:
Uma linha muito tênue separa o limite da sensata TOLERÂNCIA da insensata INTOLERÂNCIA.
Prezada Ana, o fundamentalismo religioso que matou Cristo não foi porque ele se negou a reconhecer César (não o Júlio, mas já como sinônimo de quem era o Imperador de Roma)como Deus.
Os doutores do Templo, rabinos e outras lideranças religiosas judaicas, sentido-se ameaçados pela pregação outsider de Jesus, é que articularam todas as acusações contra ele, e após isso, encurralaram Poncios Pilatos a condená-lo. O governador Romano evitou ao máximo se envolver nessa "questão judaica", como ficou fortemente simbolizado no "lavo minhas mãos", deixando que os judeus resolvessem a partir dali.
As artimanhas dos doutores do Templo para envolver Jesus em intriga política são emblemáticas por uma das passagens mais retratadas nos evangelhos de João, Lucas, Mateus e Paulo (este por ouvido e não presenciado), quando Cristo foi provocado a criticar uma nova tributação contra os então palestinos. Pediu ao fariseu que lhe mostrasse a moeda romana, onde estava a figura de César:
- Pois dai a Cesar e o que é de César, e a Deus o que é Deus.
Muitos estudiosos entendem essa passagem como uma das mais expressivas provas de que Cristo respeitava o poder constituído, devendo no entanto o Estado respeitar o Reino de Deus.
Ou seja, não havia questão religiosa ou conflito de poder entre Jesus e o Estado romano, porque o nazareno contestou muito mais as lideranças religiosas do que o poder de Roma, que não se envolvia nas polêmicas judaicas, terrivelmente desgastantes.
Um abraço!
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