Da jornalista ANA DINIZ, em seu Na Rede
Pela quantidade de e-mails que recebi, virou um cult na internet um programa, feito pela televisão dos Estados Unidos, sobre o sistema de saúde inglês.
Pois resolvi responder à pergunta embutida no cult: porque não fazemos assim?
Bem, a primeira questão é dinheiro. A Inglaterra tem uma renda por pessoa (a chamada renda per capita) de 36 mil dólares anuais. O Brasil chegou próximo aos 10 mil dólares anuais no ano passado: ou seja, menos de um terço. Isso significa que, para começo de conversa, o Brasil arrecada, em termos proporcionais, três vezes menos impostos que a Inglaterra. E, continuando a conversa de impostos para financiar o sistema, a carga tributária brasileira é menor que a inglesa: o último estudo publicado a respeito, em 2008, pela Receita Federal, situava o Brasil com 34,41% de carga tributária (a porcentagem de renda que o cidadão tem que transferir para o Estado, através dos muitos impostos e taxas), e a Inglaterra com 35,7%. Então: Brasil, 34,41% de 10 mil dólares/ano: 3.441 dólares por pessoa; Inglaterra, 35,7% de 36 mil dólares/ano: 12.852 dólares por pessoa.
A segunda questão é de escala. O Brasil é um país continental, com concentrações populacionais altas em alguns lugares e dispersão populacional também alta em muitos outros. A área da Inglaterra (130 mil km2) é equivalente à do Estado do Paraná (199 mil km2). O pequeno tamanho e a concentração populacional permitem que as cidades, vilas e aldeias se interliguem mais facilmente, o que facilita a integração de recursos, inclusive os humanos: é possível, por exemplo, transportar um paciente facilmente para um hospital especializado, de forma que o médico generalista (aquele que aparece na reportagem) não tem que se ver com os casos mais complicados. Ele tem uma retaguarda qualificada e que pode usar. Na maior parte do Brasil, isso é quase impossível – o transporte aéreo de pacientes, por exemplo, é necessário quase como rotina em dezenas de Estados.
A terceira questão é de qualificação de mão de obra. Ainda pagamos o preço da rapina colonial europeia: nossas escolas superiores se desenvolveram a muito custo, e se Napoleão não tivesse invadido Portugal, teríamos esperado mais ainda para começar. Isso aconteceu tanto aqui como na África do Sul, de colonização inglesa, no Zimbabwe (holandesa), Marrocos (francesa), Argentina (espanhola) e por aí afora. Os Estados Unidos se livraram disso porque tiveram uma formação diferente, e se tornaram país muito antes de nós. Assim, as escolas de medicina que nos Estados Unidos se iniciaram com Harvard, em 1626, no Brasil só começaram em 1808 – quase exatos duzentos anos depois. Faz muita diferença, porque ciência e educação são processos lentos de formação e multiplicação. Hoje, temos equipamentos de última geração sem ter quem os opere em vários locais do país.
A quarta questão é cultural. A reportagem exibida foi feita pela televisão dos Estados Unidos para ser exibida nesse país, questionando o sistema de saúde americano (que, aliás, Obama está tentando reformar agora). Ora, os EUA têm dinheiro e mão de obra qualificada semelhante à inglesa, e escala semelhante à do Brasil. Porque eles não têm um sistema de saúde semelhante?
Porque a Inglaterra é um país fechado e os Estados Unidos, assim como é o Brasil, são países abertos. Abertos do ponto de vista de migrantes (a Inglaterra se fecha totalmente quando julga necessário) e do ponto de vista social (a Inglaterra ainda mantém uma casta aristocrática, e a Câmara dos Lordes é a maior expressão disso). Isso permite uma dura disciplina de trabalho que, se de um lado facilita que o sistema funcione azeitado, por outro sufoca a originalidade e retarda a inovação. Ora, isto conflita com o jeito americano de ser (tanto no Brasil como nos EUA), jeito que deriva das necessidades da sociedade. Nos Estados Unidos, se alguém se comove com uma criança sem pernas por conta da explosão de uma mina terrestre, mobiliza céus e terra, arrecada dinheiro, arranja patrocinador e consegue a prótese. Na Inglaterra, põe-se Lady Di para fazer campanha contra as minas, mas os hospitais têm uma cota de prótese e dela não passam – mesmo que o país inteiro esteja comovido com o drama.
É um jeito duro de administrar, que o Brasil talvez até um dia, muito longínquo por sinal, queira e consiga fazer.
Uma última observação: na reportagem, informa-se orgulhosamente que o sistema inglês nasceu imediatamente após a guerra, em 1946, portanto. Nosso SUS nasceu quarenta anos depois, em 1988, e, em vinte anos, tornou obsoleta a caridade das centenas de organizações religiosas que atendiam os chamados indigentes – pessoas que podiam morrer por não poder pagar tratamento. Hoje, essas organizações integram a rede SUS, com liberdade, aproveitadas todas as suas instalações, e o que antigamente era caridade se tornou direito. A mortalidade no parto despencou em mais de 60% no período. A mortalidade infantil, que era de 75 por mil em 1986, já 1990 passava para 55 por mil e em 2009 se reduziu para 20 por mil.
Falta muito, por certo, para chegar aos 5 por mil, nível da Inglaterra. Mas só esses resultados demonstram que o SUS – sem o rigor disciplinar inglês e com todas as suas dificuldades - é uma extraordinária realização brasileira.
Um comentário:
postar um elogio ao comentario é redundante, no entanto é brilhante a análise, permitindo-se dizer que medidas que trariam alentos ao Sistema SUS, se utilizdos com o rigor ingles como o "Imposto sobre o Cheque" combatidos e derrubada pela elite e a emenda constitucional 29 paralizada no congresso até hoje seriam de grandes benefícios ao sistema.
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