No apagar das luzes do ano passado, a Fiocruz lavou a alma nacional ao negar pedido do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para reservas de vacinas contra a Covid-19.
A instituição informou em nota que a produção é destinada "integralmente" ao Ministério da Saúde. E destacou que a estratégia visa atender à demanda do Programa Nacional de Imunização (PNI).
"A produção dessas vacinas será, portanto, integralmente destinada ao Ministério da Saúde, não cabendo à Fundação atender a qualquer demanda específica por vacinas", argumentou a Fiocruz, justificando sua decisão de negar o pedido dos dois tribunais.
Por que a Fiocruz lavou a alma nacional?
Porque privilégios são inaceitáveis.
E neste momento, em que o País enfrenta uma tragédia sanitária em que mais de 200 mil pessoas já morreram de Covid-19, a simples intenção - ou pretensão - de garantir privilégios para certos segmentos soa como ofensiva e indecorosa.
Mas, ao que parece, a Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e a Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) não conseguiram desvencilhar-se do animus de valer-se de privilégios discutíveis, para não dizermos inaceitáveis, nestes tempos de pandemia.
As duas universidades registraram, junto ao Instituto Butantan, a intenção de comprar doses de vacina contra a Covid para imunizar, segundo dizem, parte de suas comunidades acadêmicas. A Ufra pretende comprar 12 mil doses e a Ufopa, 10 mil.
Trecho de notícia divulgada no site da Ufopa diz o seguinte: "De acordo com o reitor da Ufopa, Hugo Alex Diniz, a compra está ancorada na Medida Provisória nº 1.026, de 06/01/2021, que permite a instituições da administração pública realizar a compra direta da vacina para combater a Covid-19. "Assim que foi publicada a medida provisória, que permite que possamos comprar diretamente a vacina, tomamos a iniciativa”, afirmou Diniz.
Nem tudo que é legal é legítimo. A intenção da Ufopa e da Ufra de adquirirem vacinas, sob a alegação de que o fazem escorando-se em permissivo legal, deve ser submetida a outros crivos, a outros critérios a que devem subordinar-se os administradores, sobretudo os que atuam no setor público.
No caso, é indispensável que a Ufopa sopese a permissão legal que lhe faculta adquirir a vacina com outros critérios, como a da coveniência, do tratamento equânime que deverá ser garantido à população que se encontra fora do ambiente acadêmico e da parcimônia com que devem ser geridos os recursos públicos.
Se a ideia é que o plano de imunização interno da Ufopa "esteja alinhado com o plano estadual e o nacional", conforme dito na notícia disponível no portal da Universidade, por que não comprar as vacinas e doá-las ao SUS, para que as secretarias de saúde dos municípios encarreguem-se de aplicar o imunizante de acordo com o calendário nacional de imunização?
Tem mais um detalhe, que é tão relevante quanto objetivo: a pretensão das universidades, se consumada, vai ignorar as faixas etárias que serão consideradas na aplicação da vacina em todo o País - primeiro as populações vulneráveis e profissionais de saúde, depois os idosos, em seguida os portadores de comorbidades etc.
Em resumo: o intento das universidades, em reservar vacinas para imunizar primeiro os seus, inevitavelmente vai criar uma situação em que teremos cidadãos de segunda classe (todos os que vão para a fila, esperar a vacina do SUS) olhando, desalentados, os de primeira (integrantes das comunidades acadêmicas) sendo vacinados antecipadamente. É como se os privilegiados estivessem furando a fila.
Está certo isso? Privilégios como esses serão toleráveis? Serão aceitáveis? Serão convenientes? Serão legítimos, muito embora as universidades invoquem a legalidade de seus procedimentos?
E a questão do dinheiro público? Tanto a Ufopa como a Ufra dispõem de orçamento próprio. O dinheiro que as sustenta é da União, proveniente de impostos de contribuintes - eu, tu, ele, nós, vós, eles. Todos nós, portanto, deveríamos ser iguais. Por que, então, uns deverão ser mais iguais que os outros?
Ainda está na hora de tanto a Ufopa como a Ufra ponderarem sobre questões como essas.
Se não revirem suas intenções, resta ao Butantan negar a reserva das vacinas pretendidas pelas duas universidades, da mesma forma que a Fiocruz negou ao STJ e ao Supremo.
Assim deve ser, para que os privilégios não preponderem nesta hora tão tormentosa que todos enfrentamos.
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