Por Ricardo Pinho, no site Migalhas
Ou deveria ser. Ao menos em relação às biografias "não" autorizadas. Esta proibição não faz qualquer sentido e não importe o eufemismo que se utilize para a ele se referir, trata-se de censura. E de censura da pior espécie: censura prévia. No estilo "não vi e não gostei". No caso, "não li e não gostei".
O interessante é que muitos dos artistas que defendem a proibição das biografias "não" autorizadas foram defensores intransigentes da liberdade de expressão durante a ditadura militar e totalmente contra qualquer forma de censura. Pois era um posicionamento óbvio, já que não há arte sem liberdade de expressão. Às vezes a censura demanda mais criatividade para que seus limites sejam contornados, mas, ainda assim, não se torna benéfica por esse motivo. Toda a forma de censura é odiosa e deve ser evitada. Se necessária, sua utilização deve ser excepcional e parcimoniosa. Nunca deve ser a regra.
Nossos artistas – notadamente nossos compositores, músicos e intérpretes – são os maiores e melhores representantes da nossa cultura e da nossa sociedade. São personalidades queridas, das quais nos orgulhamos. São respeitados não só no Brasil, mas também no exterior e, sem sombra de dúvida, a sua produção cultural é de altíssima qualidade e somos reconhecidos como uma nação culturalmente relevante graças a eles.
A despeito disso e de toda a importância e respeito que inspiram, artistas não podem ser tratados como se pertencessem a uma categoria "especial" de cidadãos. O princípio da igualdade perante a lei, do tratamento legal isonômico, é basilar da nossa sociedade. Quanto mais "categorias" de cidadãos tivermos - e já temos muitas, todas informais e ilegais – mais divididos estaremos e mais desiguais seremos.
Há uma curiosidade natural em relação à vida dessas personalidades, que fazem parte do nosso dia-a-dia e estão tão perto de nós, quanto estão distantes. Quanta esperança nos dão aqueles artistas de origem simples, que venceram pelo talento! Seus exemplos de mobilidade social e de igualdade de oportunidades nos fazem acreditar na democracia e na liberdade mais do que o resultado de qualquer eleição absolutamente transparente e democrática.
Esses mesmos artistas reclamam, agora, de uma imprensa que os persegue e que não lhes dá oportunidade de manifestarem-se quanto às suas objeções à liberação das biografias "não" autorizadas. Desculpe, mas não é verdade. Esses artistas, como já dito aqui, são pessoas queridas de toda a nossa sociedade, inclusive de grande parcela de jornalistas, políticos e juristas. Por conta disso, gozam de um prestígio – cultivado e merecido – que faz com as discussões sobre tópicos de seu interesse reverberem muito mais do que as discussões sobre tópicos de interesse de outras categorias de artistas, tão merecedores de respeito e admiração da sociedade quanto eles próprios. Ora, ninguém propôs a isenção de impostos para livros eletrônicos, por exemplo, como uma medida de beneficiar seus autores. Ou, ainda, uma regulamentação clara e precisa para o direito de sequência devido aos artistas plásticos.
A discussão sobre a necessidade de autorização para biografias é de toda inócua e, me desculpem seus defensores, não se sustenta. Ora como se defender que um político pode ser biografado sem sua autorização, mas um artista não? Com o singelo e absurdo argumento de que políticos vivem de dinheiro público? Então só se poderia biografar a parte da vida do político e que ele se sustentou com "dinheiro público"? Todo dinheiro é público antes que passe a nos pertencer. Os artistas – assim como médicos, advogados, etc. – vivem, senão de dinheiro público, do dinheiro do público.
O que faz toda a diferença não é o dinheiro público ou o dinheiro do público, mas a decisão do artista em se tornar uma personalidade pública. Nessa discussão, muito se tem falado em se equilibrar o direito de liberdade de expressão com o direito à privacidade. No entanto, o que alguns artistas querem é que o fato de que abriram parte de sua privacidade para se tornarem personalidades públicas seja ignorado e que somente eles possam controlar quando lhes é conveniente serem personalidades públicas ou personalidades privadas. Não estou aqui dizendo que artistas não têm direito à privacidade, mas, isto sim, que eles próprios abriram mão de grande parcela desse direito quando optaram por seguir uma carreira que os alçou à condição de personalidades públicas. E não pode haver dúvida que vivem desta exposição pública.
A discussão é inócua e já adentrou a esfera simplesmente opinativa. Não está mais sendo discutida como uma questão de cunho social e tomando-se em consideração aspectos legais. Tornou-se apenas uma discussão fundada em "eu acho" e "eu quero". E é assim porque, no campo legal e jurídico, não há o que se discutir: a proibição é absurda.
E essa discussão afasta o foco de questões na seara do direito autoral que afetam os artistas mais diretamente. Há a questão de todas as violações que são praticadas e difundidas no meio virtual, sem que o país tenha adotado um marco regulatório para a Internet. Há a questão das cópias reprográficas de obras literárias e técnicas, que castiga e inviabiliza a produção acadêmica. Há a questão do direito de sequência, da obra sobre encomenda e dos direitos dos músicos que deveriam receber como intérpretes e no mais das vezes são remunerados uma única vez e por "tarefa". No campo da limitação dos direitos, caberia discutir o prazo de proteção da obra: 70 anos após a morte do autor, beneficiando seus descendentes, não seria um prazo muito longo? Enfim, há questões mais prementes e bem mais relevantes que estão sendo esquecidas.
A proibição das biografias "não" autorizadas, a título de proteção da "privacidade" do biografado, não se sustenta. Há meios legais de coibir os abusos cometidos. Sim, a justiça brasileira é lenta e as indenizações são, muitas vezes, ínfimas. Infelizmente, o são para todos os jurisdicionados. Não é um problema que aflige apenas a nossos artistas. Aflige a todos nós. Mas, ainda assim, uma vez ou outra publicações que se dedicam a acompanhar a vida das celebridades – as popularmente chamadas "revistas de fofocas" – são processadas e penalizadas, inclusive ao pagamento de danos morais. As indenizações por danos morais pagas a artistas e celebridades são, na maioria das vezes, muitíssimo superiores àquelas pagas a cidadãos "comuns" e não há nada de errado ou de perverso nisso. Ora, quanto mais pública a personalidade, maior a sua exposição popular, daí a necessidade de indenizações maiores para desencorajar o aviltamento de sua fama. Pode-se entender o valor de tais indenizações como uma compensação pela opção do artista em se expor mais, expondo a sua privacidade a maior risco.
Se o biografado deve ou não ser remunerado pela publicação de suas biografias é uma questão que extrapola a discussão se biografias "não" autorizadas podem ser publicadas. Como as partes envolvidas são partes privadas, elas podem negociar livremente. No entanto, a inexistência de remuneração ao biografado ou a seus descendentes não deve ser razão para impedir a publicação de uma biografia. Deve ser reconhecido, no entanto, que o trabalho é do biógrafo que pode ter contado ou não, com a colaboração do biografado; o quê, em muitos casos, fará a diferença entre uma biografia “autorizada” e oficial e uma biografia “não” autorizada. Como negar, por exemplo, que o trabalho do biógrafo e historiador Paulo Sérgio de Araújo - autor da biografia "proibida" Roberto Carlos em Detalhes - que 15 quinze anos pesquisou a vida do biografado através de fontes públicas e nunca teve uma única entrevista concedida a si pela biografado, pertence somente a ele?
Há mecanismos para que as biografias sejam publicadas e há mecanismos para que aquelas que sejam mentirosas e caluniosas sejam recolhidas e seus autores e editores, devidamente penalizados. Deve-se, também, confiar na maturidade e na responsabilidade dos editores. Uma editora séria não irá publicar biografias levianas. Um autor sério, não irá publicar uma biografia mentirosa, desprovida de fundamentação fática. Diga-se, que ser biógrafo não é uma escolha fácil, ainda que esse biógrafo se dedicasse somente a biografias autorizadas ou oficiais: a quantidade de pesquisa para fundamentar a biografia é extensa e, em muitos casos, feita em fontes remotas e de difícil acesso. Além disso, escritores tendem a ser remunerados em menor proporção que outros artistas.
Em que pese a liberdade de expressão, biografias – assim como quaisquer outros escritos – que incentivem a prática de crimes, que enalteçam criminosos e seus crimes e denigram suas vítimas, que atentem contra a sociedade e seus valores, devem ser proibidas pelo poder público, numa análise caso a caso. No entanto, essas exceções não podem ser alçadas à condição de regra para impedir todas as biografias "não" autorizadas.
As vidas públicas – de artistas, de políticos, de celebridades e de quem quer que seja – são parte da história de um povo. As biografias refletem essa história, que pode ser vista por diferentes perspectivas, sem, contudo, perder a importância para aquela sociedade. A história, as personalidades e suas biografias se renovam e se renovarão sempre e "apesar de você" – de nós – "amanhã há de ser um novo dia".
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* Ricardo Pinho é especializado em Direito de Propriedade Intelectual e advogado do escritório Guerra Advogados Associados.
Um comentário:
Pois é... "O interessante é que muitos dos artistas que defendem a proibição das biografias 'não' autorizadas foram defensores intransigentes da liberdade de expressão durante a ditadura militar e totalmente contra qualquer forma de censura. Pois era um posicionamento óbvio, já que não há arte sem liberdade de expressão.", mais uma evidência que há artistas pra lá de hipócritas - mas, por excelência, comerciantes exploradores da boa fé e ignorância pública...
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