Morre Alexander Solzhenitsyn, o escritor russo que sobreviveu às prisões comunistas e revelou, em Arquipélago Gulag, toda a insanidade de um regime totalitário. O escritor e dissidente soviético fora laureado com o Prêmio Nobel de literatura em 1970. Morreu aos 89 anos, dia 3 de agosto de 2008, pouco antes da meia-noite (horário local), em decorrência de insuficiência cardíaca aguda, explicou à Imprensa o filho do escritor, Stepan.
Com palavras, Solzhenitsyn expôs o fracasso soviético. O escritor serviu no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial, mas se tornou um dos mais conhecidos dissidentes durante a era soviética, enfrentando a perseguição do regime. Em fevereiro de 1945, já no ocaso do segundo conflito mundial, um oficial soviético foi preso por agentes de espionagem de seu próprio país.
Ainda que fosse membro da Juventude Comunista, foi acusado de ter se referido ao ditador Joseph Stalin, em carta a um amigo de escola, como o "homem do bigode". Recebeu por causa disso uma pena de oito anos de prisão em um campo de trabalho e reeducação, e mais três degredado em um assentamento remoto na porção oriental da União Soviética. No exílio, foi diagnosticado com um tumor maligno no estômago e só com muita dificuldade conseguiu autorização para buscar tratamento em uma cidade maior.
Começava aí a se cumprir o destino do escritor que, anos mais tarde, revelaria o lado mais podre do sistema soviético: o desrespeito sistemático à cidadania e cenas incontáveis de humilhação. Pelas contas do próprio Alexander Solzhenitsyn, 60 milhões de pessoas enfrentariam agruras parecidas com as suas. Toda essa gente era alcunhada por zek.
O zek Solzhenitsyn bateu-se contra o grande Leviatã do século 20: a máquina totalitária da União Soviética. Sua obra mais celebrada, O Arquipélago Gulag, é uma radiografia do estado comunista e de seu sistema de prisões para dissidentes políticos - "Gulag" é a sigla em russo de Diretório Geral de Campos. "Arquipélago Gulag é a maior e mais poderosa condenação de um regime político erigida nos tempos modernos", declarou o diplomata americano George Kennan, profundo conhecedor da política soviética.
Nascido em 1918, um ano depois da revolução comunista, em Kislovodsk, uma pequena cidade da região norte da Rússia, estudou física e matemática na Universidade de Rostov, entrando para as forças armadas após a invasão de Hitler, em 1941. Mas em um relato autobiográfico escrito por ocasião do Prêmio Nobel, ele conta que desde criança quis se tornar um escritor, mas que as condições financeiras de sua família não permitiram adquirir uma educação literária.
Solzhenitsyn, ao sair da prisão, depois de cumprir a pena integralmente e, por coincidência, no mesmo dia da morte de Stalin, tornou-se professor de ciências numa escola secundária perto de Moscou. À noite, de uma maquina de escrever, usando o menor espaço entre as linhas e os dois lados do papel como medida de economia, nasceu seu primeiro livro, Um Dia na Vida de Ivan Denissovich.
O comunismo vivia então um período de distensão, sob a guarda do premiê Nikita Kruchev, famoso por seu discurso de denúncia dos crimes de seu antecessor, Joseph Stalin, morto em 1953. Como a URSS vivia tempos mais amenos, foi graças a esse relaxamento do aparato policial que Solzhenitsyn pôde publicar em 1962, a novela Um Dia na Vida de Ivan Denissovich, relato cru do cotidiano de um prisioneiro do Gulag. Kruchev lera a novela e recomendara pessoalmente a sua liberação à cúpula comunista, tornando-se uma celebridade literária - mas também o tornou suspeito para a linha dura comunista, que voltaria ao poder quando Kruchev foi "aposentado" compulsoriamente e Leonid Brejnev tomou seu lugar em 1964.
Gulag não se limitou a atacar o stalinismo, como queria Kruchev: era uma condenação global do comunismo, desde Lênin. Como o livro teve grande repercussão fora da União Soviética, Moscou o chamou de "arruaceiro", reclamou Brejnev e acabou prevalecendo a proposta de Iuri Andropov, chefe da KGB e futuro sucessor de Brejnev: em fevereiro de 1974, Solzhenitsyn foi forçado ao exílio no Ocidente.
Exilado, viveu na Europa e Estados Unidos. Patriota ortodoxo, com o fim do comunismo voltou a seu país, não sem antes desancar a fraqueza moral de americanos e russos - e criticar a música e a imprensa dos EUA. No fim da vida, ensaiou alguns elogios a Vladimir Putin. Sua desaprovação aos ataques da Otan contra o genocida sérvio Slobodan Milosevic tampouco lustra sua biografia. São deslizes menores na trajetória de um homem que defendeu corajosamente a dignidade humana ante o terror totalitário.
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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com
Com palavras, Solzhenitsyn expôs o fracasso soviético. O escritor serviu no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial, mas se tornou um dos mais conhecidos dissidentes durante a era soviética, enfrentando a perseguição do regime. Em fevereiro de 1945, já no ocaso do segundo conflito mundial, um oficial soviético foi preso por agentes de espionagem de seu próprio país.
Ainda que fosse membro da Juventude Comunista, foi acusado de ter se referido ao ditador Joseph Stalin, em carta a um amigo de escola, como o "homem do bigode". Recebeu por causa disso uma pena de oito anos de prisão em um campo de trabalho e reeducação, e mais três degredado em um assentamento remoto na porção oriental da União Soviética. No exílio, foi diagnosticado com um tumor maligno no estômago e só com muita dificuldade conseguiu autorização para buscar tratamento em uma cidade maior.
Começava aí a se cumprir o destino do escritor que, anos mais tarde, revelaria o lado mais podre do sistema soviético: o desrespeito sistemático à cidadania e cenas incontáveis de humilhação. Pelas contas do próprio Alexander Solzhenitsyn, 60 milhões de pessoas enfrentariam agruras parecidas com as suas. Toda essa gente era alcunhada por zek.
O zek Solzhenitsyn bateu-se contra o grande Leviatã do século 20: a máquina totalitária da União Soviética. Sua obra mais celebrada, O Arquipélago Gulag, é uma radiografia do estado comunista e de seu sistema de prisões para dissidentes políticos - "Gulag" é a sigla em russo de Diretório Geral de Campos. "Arquipélago Gulag é a maior e mais poderosa condenação de um regime político erigida nos tempos modernos", declarou o diplomata americano George Kennan, profundo conhecedor da política soviética.
Nascido em 1918, um ano depois da revolução comunista, em Kislovodsk, uma pequena cidade da região norte da Rússia, estudou física e matemática na Universidade de Rostov, entrando para as forças armadas após a invasão de Hitler, em 1941. Mas em um relato autobiográfico escrito por ocasião do Prêmio Nobel, ele conta que desde criança quis se tornar um escritor, mas que as condições financeiras de sua família não permitiram adquirir uma educação literária.
Solzhenitsyn, ao sair da prisão, depois de cumprir a pena integralmente e, por coincidência, no mesmo dia da morte de Stalin, tornou-se professor de ciências numa escola secundária perto de Moscou. À noite, de uma maquina de escrever, usando o menor espaço entre as linhas e os dois lados do papel como medida de economia, nasceu seu primeiro livro, Um Dia na Vida de Ivan Denissovich.
O comunismo vivia então um período de distensão, sob a guarda do premiê Nikita Kruchev, famoso por seu discurso de denúncia dos crimes de seu antecessor, Joseph Stalin, morto em 1953. Como a URSS vivia tempos mais amenos, foi graças a esse relaxamento do aparato policial que Solzhenitsyn pôde publicar em 1962, a novela Um Dia na Vida de Ivan Denissovich, relato cru do cotidiano de um prisioneiro do Gulag. Kruchev lera a novela e recomendara pessoalmente a sua liberação à cúpula comunista, tornando-se uma celebridade literária - mas também o tornou suspeito para a linha dura comunista, que voltaria ao poder quando Kruchev foi "aposentado" compulsoriamente e Leonid Brejnev tomou seu lugar em 1964.
Gulag não se limitou a atacar o stalinismo, como queria Kruchev: era uma condenação global do comunismo, desde Lênin. Como o livro teve grande repercussão fora da União Soviética, Moscou o chamou de "arruaceiro", reclamou Brejnev e acabou prevalecendo a proposta de Iuri Andropov, chefe da KGB e futuro sucessor de Brejnev: em fevereiro de 1974, Solzhenitsyn foi forçado ao exílio no Ocidente.
Exilado, viveu na Europa e Estados Unidos. Patriota ortodoxo, com o fim do comunismo voltou a seu país, não sem antes desancar a fraqueza moral de americanos e russos - e criticar a música e a imprensa dos EUA. No fim da vida, ensaiou alguns elogios a Vladimir Putin. Sua desaprovação aos ataques da Otan contra o genocida sérvio Slobodan Milosevic tampouco lustra sua biografia. São deslizes menores na trajetória de um homem que defendeu corajosamente a dignidade humana ante o terror totalitário.
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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com
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