João Carlos Pereira com a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, de quem era devoto: sem ele entre nós, precisamos acreditar que, sim, ele sempre estará em nossos corações |
A morte é uma coisa horrível.
Independentemente de nossas crenças - ou da falta delas -, a morte, sendo a coisa mais certa que existe ao cabo de uma trajetória de vida, é a pior coisa que pode acontecer.
A morte que nos arranca um amigo é algo que, de tão horrível, chega a nos entorpecer. A um ponto em que não conseguimos nem atinar com essa realidade - esperada, certa, implacável e inexorável, mas ao mesmo tempo misteriosa, insondável, incompreensível.
Neste momento, vejo-me com a alma entorpecida, anestesiada, infértil a qualquer formulação racional capaz de me fazer compreender a morte de um amigo.
Um amigo como João Carlos Pereira.
Há 15 dias, seus familiares e tantos de nós, seus amigos, vivíamos em aflição, que seu estado de saúde justificava, depois que contraiu a Covid-19 e foi internado na Beneficente Portuguesa.
Durante esse período, festejamos como pequenas vitórias as batalhas que João, num dado momento, estava conseguindo superar.
Até que uma piora repentina levou a que precisasse ser intubado (ou entubado, como queiram). E daí em diante, irreversível, inexorável e implacavelmente, sua vida foi-se esvaindo aos poucos até extinguir-se de vez, aos 61 anos, nesta terça-feira (10).
Quando recebi, no início da manhã, uma mensagem de Emília, minha amiga, ex-professora e mulher de João, dizendo que ele havia partido, foi como se um turbilhão - de emoções e lembranças - aflorasse à minha alma entorpecida.
João, para mim, não foi o professor.
Nem o escritor.
Nem o acadêmico da Academia Paraense de Letras.
Nem o jornalista.
João Carlos foi o irmão que não tive.
Foi o amigo que brotou do nada, como as boas e inapagáveis amizades.
Conhecemo-nos no final da década de 70, quando ambos começamos a estudar na UFPA.
João cursava Letras e eu, Jornalismo.
Como, naqueles tempos, muitas disciplinas reuniam graduandos dos dois cursos, era comum nos encontrarmos nos mesmos pavilhões.
Essa proximidade estreitou-se ainda mais quando ingressei em O LIBERAL, no início dos anos 80, e já encontrei João como editor do caderno de Cultura.
Daí para frente, a vida foi-nos aproximando mais e mais, até sobrevir uma sintonia que, como dito, transformou-nos, mais que amigos, em irmãos.
Não havia uma semana em que eu não falasse com João. Às vezes, dependendo das novidades, nos falávamos todo dia, várias vezes ao dia.
Era um contato sempre revigorante.
Muito bem informado, João Carlos tinha informações preciosas que extravasavam, de muito, o ambiente de intelectuais em que ele mais assiduamente circulava, até mesmo por sua condição de membro da APL.
No início deste ano, fiz uma revisão preliminar num livro que ele estava escrevendo para recuperar, cronologicamente, as transformações que o Círio de Nazaré (tema que o revelaria como um dos maiores conhecedores no estado do Pará) sofreu ao longo desses dois últimos séculos.
Chegamos a trocar algumas ideias para aperfeiçoar a obra, que estava, ou melhor, que está quase pronta, vazada num texto jornalístico, leve, objetivo, mas preciso e estilisticamente primoroso.
Frequentemente, João me mandava as crônicas que seriam publicadas posteriormente em O LIBERAL, onde tinha uma coluna às segundas-feiras.
Era sempre um enorme prazer lermos o João. Ele era um poeta-prosador - ou um prosador-poeta, sei lá.
"Ele é o nosso Rubem Braga", definiu-me uma vez meu tio Emir Bemerguy, também poeta e escritor, que faleceu em 2012, aos 79 anos, e encontrou-se com João pelo menos uma vez e também lia suas crônicas.
João Carlos era capaz de ver na manga apodrecida, esbagaçada, dessas que a gente encontra à farta nas calçadas de Belém, sinais e significados de delicadeza, singeleza, lirismo e poesia que só uma alma delicada como a dele poderia buscar.
Se o desafiassem a escrever sobre a física quântica, João seria capaz de nos fazer ficar emocionados com átomos e moléculas. E de transformar uma equação em algo tão simples como pegar uma tigela, enchê-la de açaí e beber. Com ou sem farinha de tapioca.
Não à toa, essa arte que lhe foi inata tornou seu curso de Redação um dos mais conceituados de Belém na preparação de estudantes prestes a fazer o vestibular.
Minhas duas filhas, e tantos outros colegas delas, estudaram redação como o João e até hoje conservam gravados - muito bem gravados - os ensinamentos que receberam, num estilo parecido com o próprio jeito do professor: discreto, com uma modulação de voz que às vezes parecia um sussurro e com a segurança de quem domina perfeita e amplamente seu ofício de ensinar. E ensinar bem.
Sem João Carlos entre nós, permanece a certeza de que, sim, ele sempre estará entre nós, em nossa lembranças, em nossos corações.
Precisamos acreditar nisso para que o golpe representado por sua ausência física seja amenizado.
Precisamos acreditar nisso para que nossas almas fiquem menos entorpecidas.
Precisamos acreditar nisso para que, enfim, encontremos na vida motivações bastantes para prosseguir.
Porque a vida precisa seguir.
Infelizmente, sem meu amigo João Carlos Pereira.
Mas precisa seguir.
À Emília e filhas, meu abraço afetuoso.
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