quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Visão de turista



Viajar produz um efeito fascinante. De repente, como nos contos de fada, nossos olhos abrem-se para um mundo desconhecido. Um mundo rico de detalhes fora do senso comum. Ficamos impressionados com as ruas, casarios, árvores, praças, cursos d’água. Mais atentos, notamos o andar da população local, seu ritmo, sotaque, culinária. Tudo ganha cor, som e gosto.
Quando visitamos lugares novos, nossos sentidos trabalham a toda força. Olhos têm campo visual pleno. Galgamos todos os seus graus de degraus. Para perto ou para longe. Temos capacidade de degustar cardápios “únicos”. De enxergar cores, rugas, rostos corados, pálidos ou tristes. Avistamos longe o desenho do cais, de prédios enfileirados. Até pedintes com seus corpos traumatizados são exemplares raros. Coisa que não se vê em nossa terra. Não assim.
Mapeamos tudo, capaz de causar inveja a Sherlock Holmes.
A visão de turista é única. Residentes não conseguem ver suas cidades por esse ângulo analítico-descritivo. Facilmente, não. Quando muito, criticamos isto e aquilo. Observamos alguns detalhes. Mas a vida logo embaça essa visão. Ficamos logo turbados com o horário do trabalho, o trânsito caótico no caminho da escola dos filhos, o supermercado, idas diárias à farmácia... Deveres, deveres, deveres. Até mesmo nos lazeres.
Além de a vida normal ser trabalhosa, outro fator autóctone que embaça a nossa visão é a história. A história que testemunhamos em nossa cidade, no eterno jogo de demolir e edificar, passatempo preferido da humanidade. Então, como o desenho geográfico vai se ajustando perante os nossos olhos, a obra pronta não nos fascina tanto. Muito menos a inacabada, a emperrada pela burocracia pública. Não parece haver nada de mais naquilo que coletivamente demolimos ou edificamos.
A visão do turista é diferente. Quando visitamos um lugar novo, nem sempre a história é levada em conta na paisagem que vemos. A cena parece congelada para nós. De repente, você pode achar que a praia de Iracema sempre foi daquele jeito. Calçadão. Feirinha. Restaurantes.
Animação! Na verdade, nada hoje é igual a ontem. Até o mar foi recuado. Aterrado, para que você pudesse passear rápido pela orla. E, se a história for considerada para o turista, será para engrandecer melhor a paisagem. Fora de casa, visitamos museus, teatros e tanta coisa. Até shopping é diferente. Embora, suas cores e sabores não mudem como a gente.
Apesar de não ser fácil, vale a pena aproveitar uma folga para olhar a nossa cidade. Pode ser um dia ou apenas alguns minutos. Olhe a rua de sua casa em toda a sua extensão. Esqueça, por uns instantes, que você mora ali. Veja o desenho das casas. As árvores. Observe as pessoas andando. Carros. Bicicletas. Motos. Esse movimento humano frenético.
Não reclame. Lembre-se daquelas clássicas cenas da Índia. Polvorosa.
Você iria gostar se estivesse lá. E os indianos apreciariam a nossa calmaria. No mínimo lhes seria diferente. Olhar de turista.
Temos recursos para uma perfeita visão do lugar onde moramos. A história pode nos fazer enxergar além do que vê um simples turista.
Este enxerga um presente estático. Mas para nós o presente é dinâmico.
Podemos apreciá-lo hoje e reconstituir seus passos. Podemos tirar lições. Refletir. Ponderar. Afinal de contas, a cena ao nosso redor muda a toda hora. E nós mudamos mais rápido que as pedras. Portanto, vamos olhar a vida enquanto há tempo. Principalmente aqui, onde a vivemos como ela é. Não podemos abandonar a contemplação. Precisamos dessa visão de turista.

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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br

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