quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Cultura de morte na saúde


Há uma cultura de morte na saúde pública brasileira. Uma cultura de morte estatal, que permeia a mente de burocratas corruptos e contamina servidores na área-fim. Excetuando bons profissionais, o que vemos diariamente é uma completa inversão do que deveria ser um tratamento digno. Falta quase tudo: remédios, leitos, recursos humanos e materiais. Falta humanidade. Sobram políticos atravessadores, capazes de superfaturar ambulâncias e desviar orçamentos. Homicidas de terno e gravata. E também homicidas que, pela negligência, tingem de sangue seus aventais aparentemente limpos.
Semana passada, acompanhei o drama de um paciente necessitado de cirurgia urgente. Seu estado era gravíssimo, porém, não havia leito disponível na rede pública. A providência demorou uma semana. Graças a Deus, sem óbito.
Dias antes, fui pessoalmente com uma amiga a um posto de saúde. Ela precisava de vacina contra gripe. Tinha prescrição médica. Todavia, o que recebemos foi uma resposta negativa. Seca. Séria. Sem o mínimo ar de humanidade. Assim ocorre em tantas casas de saúde. Gente grossa. Antipática. Insensível. De mal com a vida e com todos que a procuram. Por que não mudam de ramo? Por que não pedem demissão? Por que insistem nessa postura carrasca contra a população honesta, que paga seus impostos e custeia os salários da saúde?
Ontem, chegou a mim o e-mail de uma médica. Indignada, ela postou uma mensagem no Facebook, onde descreve o dia a dia das casas de saúde. Relata fatos que todos nós sabemos. Fatos que têm origem política. Malversação de recursos. Protecionismo. Situação calamitosa no atendimento cuja gênese não está ali no hospital, mas no gabinete equipado dos executivos que laboram em causa própria, do parlamentar corrupto, que lucra com a desgraça do povo. De mandatários ausentes e igualmente frios, que, se fossem funcionários comuns, há muito teriam sido expulsos do serviço público por desídia ou abandono do trabalho. São estes os ícones da cultura da morte na saúde. Mas há outros tantos na base do sistema.
Lembro da época quando trabalhei na extinta Sucam. O regime de atendimento à população era paramilitar. Fizesse sol ou chuva, o guarda de endemias tinha o dever de visitar cada doente de malária. O remédio era entregue ao paciente, que deveria ingerir a medicação na presença do funcionário. Durante o período de chuvas em Macapá, o remédio não podia faltar. E lá ia o guarda, coberto de plástico sobre uma bicicleta. Sacola de trabalho a tiracolo. A Sucam tinha croquis dos lugarejos mais remotos. Ganhava com folga o IBGE em dizer onde estavam os brasileiros na Amazônia. Nem os índios mais retirados escapavam da visita. O trabalho era feito com amor e humanidade.
Pergunte-me quanto ganhava um guarda de malária? Resposta: um salário mínimo, sem direito a valetransporte ou auxílio-refeição. Nada de plano de saúde e outros benefícios. Só algumas parcas diárias a serem recebidas trinta dias depois. Eram andarilhos. Comiam o que arranjavam. Dormiam onde conseguiam pernoite, pois o trabalho era itinerante, sem hotel, sem conforto, sem nada. Mesmo assim, aqueles trabalhadores da saúde pública orgulhavam-se de suas fardas. Conviviam com insetos. DDT. Malária e outras doenças dos trópicos. Porém, realizavam suas tarefas com prazer e consciência de cidadania.
Parece-me que falta isto nesta sociedade. Só uma correta noção de humanidade pode salvar a saúde pública brasileira. Políticos humanos. Administradores sensíveis. Funcionários que reconheçam o valioso papel que desempenham. Nada justifica essa cultura de morte.

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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br

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