segunda-feira, 27 de junho de 2011

Liturgia da conspiração


Poucos eventos ocuparam tanto a mente dos brasileiros como a conspiração que levou ao suicídio do presidente Getúlio Vargas, que retrata um dos momentos mais sensíveis do nosso passado recente. Em um cenário de exacerbada turbulência política, o assassinato do repórter Nestor Moreira, do jornal "A Noite", acirrou dramaticamente o presidente Getúlio Vargas, que acabaria, meses depois, se matando. Esse golpe nos transporta ao Rio de Janeiro da década de 1950, aos subterrâneos de Copacabana, aos corredores do Palácio do Catete e a um sistema penal de uma cidade que ganhava ares de modernidade, mas que ainda tinha fortes laços com um passado de práticas retrógadas.
Nesse ambiente, impregnado de ressentimentos e paixões, personagens fascinantes como Carlos Lacerda, João Goulart, Luis Carlos Prestes, Samuel Wainer, Oswaldo Aranha, Tancredo Neves, o tenente-coronel Golbery do Couto e Silva e o presidente Getúlio Vargas digladiavam-se em uma disputa política que desembocaria na grande tragédia do mês de agosto.
A morte de Nestor Moreira e o atentado da Rua Tonelero continuavam sendo os principais assuntos dos jornais. Avançava 1954 e a novidade política de junho foi o pedido de impeachment do presidente Vargas, sob a alegação de que fizera um pacto com Juan Perón, presidente da Argentina. Vargas era acusado ainda de promover uma espiral inflacionária, além de autorizar empréstimo do Banco do Brasil para a criação do jornal "Última Hora" de Samuel Wainer. Mais um movimento da UDN de Lacerda para desestabilizar o governo Vargas.
A "Tribuna da Imprensa" de 15 de junho usava uma retórica no melhor estilo macartista para pregar a queda do chefe da nação: "Decide-se na Câmara a Batalha do Impeachment - Vargas afronta a consciência política e jurídica - Ameaças subversivas - É o germe da desordem social".
Samuel Wainer, através da "Última Hora", reagia: "A conspiração da anarquia e do caos está em marcha acelerada. A nata da demagogia eleitoreira, no Congresso e fora dele, nos quartéis e na Imprensa, está desenfreada". Wainer enumerava, de modo irônico, os opositores de Vargas, cujas reações poderiam ser usadas pelos seus adversários para criar um ambiente à decretação do golpe.
Apesar do rebuliço criado, o pedido de impeachment não prosperou. Para isso, contribuiu decisivamente uma declaração do prestigiado ex-presidente, Eurico Gaspar Dutra. Através de um porta-voz, o deputado Armando Falcão, Dutra mandou um recado: "Para o bem da democracia, o senhor Getúlio Vargas deve ser tolerado e sustentado no governo até o derradeiro instante de seu mandato constitucional."
O que seria dos oposicionistas no dia em que não houvesse uma crise, um escândalo, um motivo de agitação? Falhou o golpe à custa do Memorial dos Coronéis? Então surgiu o caso Perón-Vargas. Também essa tentativa fracassou? Então veio à luz o impeachment. Malogrou? Veio o Estado de Sítio, que também falhou. Ah, esse trabalho vem de longe, vem desde a conspiração da maioria absoluta, desfeita pela espada do general Estilac Leal, quando em 1950 suscitou o seguinte dilema: "Ou a posse de Vargas, eleito pelo povo ou a guerra civil."
No mais, diante da gravidade do momento, quase não se falava mais no assunto. A lucidez e a razão eram substituídas por sensações, aromas e sentimentos que deixavam no ar as mais torpes paixões. Os meses de junho e julho de 1954 foram o prenúncio do fim da era Vargas.


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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com

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