sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Estelionato eleitoral



É de causar indignação o anúncio do retorno da CPMF três dias após as eleições. Indignação porque revela, de modo cristalino, como o governo trata a sociedade. Tratamento de aparências, de valorização de temas pretéritos em detrimento do futuro certo e calculado. Foi assim a campanha política, no que diz respeito a assuntos financeiros. Houve acusação disso e daquilo e um completo vazio sobre assuntos tributários. Ninguém mencionou o anátema imposto do cheque.
Criada ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, a Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras nasceu bem intencionada. Foi gestada pelo então ministro Adib Jatene com a finalidade de socorrer a saúde pública brasileira. Porém, abandonou essa tarefa já no primeiro dia de vida. Atendendo ao chamado de burocratas famintos por verbas públicas, fugiu de casa, deixando seus irmãos agonizando nos leitos dos hospitais do SUS. Foi parar sabe Deus onde.
Quando Lula assumiu a Presidência, CPMF era uma menina paparicada. Valia 40 bilhões por ano. Não havia como pensar em viver sem ela. Longe dos corredores do SUS, a garota-prodígio conseguia atender a um mundo de gastos. Sem nenhum pudor ou economia, distribuía sua riqueza entre governadores, prefeitos e parlamentares aliados. Barganhava. Impunha-se. Negociava.
Porém, na madrugada de 13 de dezembro de 2007, o plenário do Senado decretou a morte da CPMF. Por 45 a 34 votos, o governo Lula assistiu à agonia de sua filha adotiva predileta. Depois dessa morte anunciada, a menina de ouro deixou o livro dos impostos vivos no primeiro dia de 2008. Lula, emotivo por natureza, nunca se conformou. Todo final de ano fazia as contas do prejuízo: 40, 80, 120 bilhões de reais no final de seu mandato. Foram três anos de choro.
Chegadas as eleições presidenciais, Lula viu a possibilidade de ressuscitar sua filha. Afinal de contas, esse é o período mágico, único momento em que simples mortais falam como deuses. Porém, essa ressurreição não podia provir das urnas. Anunciar o evento poderia mudar o rumo de tudo. Lula queria deixar sua sucessora acompanhada dessa adolescente afortunada, mas, para isso, precisava manter segredo do povo.
Mas chegou o dia de a CPMF ter sua primeira citação pública. Foi na quarta-feira seguinte à eleição, quando Dilma foi interrogada por jornalistas se tinha a intenção de ressuscitar o imposto. A candidata eleita disse que não, embora tenha afirmado que sabia que essa é uma discussão entre governadores eleitos.
Governadores eleitos! Pelo que sabemos, a maioria deles já se reunia com Lula após a eleição do primeiro turno. Teria sido ali, no Palácio do Planalto, que o presidente tratou com seus aliados a respeito da ressurreição da CPMF? Bem provável.
De tudo isso, é lamentável o retorno da CPMF por vários fatores. Primeiro, porque bem demonstra como eleição no Brasil ainda é algo desprovido de consistência. Como é possível conquistar um mandato escamoteando o eleitorado. Dissimulando. Mentindo.
Curiosamente, algo dessa natureza não gera nulidades. Qualquer ato administrativo de quinta categoria seria fulminado. Uma licitação seria anulada caso seu objeto fosse trocado. Portanto, como pode um governo se eleger omitindo do povo fatos que já teve ciência, no caso, a suposta intenção de governadores eleitos ainda no primeiro turno? Como pôde calar durante a campanha eleitoral sobre algo que vai mexer com o bolso de todo mundo? E, dias depois, simplesmente admitir a possibilidade de um novo tributo?
Lamentável também que a nossa agonizante saúde pública seja, mais uma vez, usada para engordar bolsos políticos. Não bastasse toda a história negra desse tributo, querer ressuscitá-lo para o mesmo objetivo é chamar o povo de acéfalo duas vezes. E não adianta renomeá-lo de Contribuição Social para a Saúde, pois isso não tem o poder de apagar a história nem de gerar credulidade.
É enganoso pensar que a CPMF não atinge as classes mais pobres. Claro que atinge. Sendo um custo empresarial, terá seu percentual repassado ao consumidor. Isso é o espírito do capitalismo.
Se vivêssemos uma democracia verdadeira, o povo sairia às ruas para denunciar essa ameaça de extorsão. A volta da CPMF constitui um golpe. Uma afronta à vontade popular manifestada nas urnas. Ou, como definiu um vereador paraibano, um estelionato eleitoral.

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RUI RAIOL é escritor (www.ruiraiol.com.br)

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