Se Belém vivesse num clima de paz, ou por outra, se a criminalidade em Belém andasse no nível do tolerável, no nível do “aceitável”, seria um tormentoso escândalo a execução, pela polícia, de cinco suspeitos do cometimento de um crime de homicídio.
E mais escandalosa ainda seria a justificativa que geralmente é apresentada em ocorrências do gênero: “as mortes aconteceram durante confronto” entre suspeitos e policiais.
Não é o que sempre se diz?
Mas como Belém vive numa espécie de barbárie, de selvageria permanente, um ocorrência, ou melhor, cinco ocorrências com esses requintes já nem mais tomam os contornos de um escândalo.
No último sábado à noite, o cabo Paulo Sérgio da Cunha Nepomuceno, 32 anos, integrante da Ronda Ostensiva Tática Metropolitana (Rotam), um grupo de elite da Polícia Militar, foi morto brutalmente.
O policial estava à paisana e voltava para casa, no conjunto Stélio Maroja, quando o abateram com seis tiros, dois deles na cabeça.
Quem matou o cabo é um selvagem, é um bárbaro, é um facínora.
Quem matou o cabo precisa ser segregado do convívio social. Precisa pagar por isso com a exclusão do convívio entre as pessoas.
O cabo era um trabalhador. Era um policial. Tinha família.
Seus familiares, seus amigos, seus colegas – de farda ou não – choram por ele.
A sociedade, que pagava o cabo Cunha para protegê-la, revolta-se com um homicídio odioso como esse.
O emudecimento geral diante da hediondez
Pois nas 48 horas que se seguiram ao assassinato do cabo Cunha, a Rotam executou cinco pessoas, todos homens.
A Rotam matou cinco. Primeiro, eliminou quatro; posteriormente, mais um corpo foi encontrado. Ao todo, repita-se, foram cinco.
Como foram mortas as vítimas?
Morreram em confronto, diz a polícia.
Foi?
Não. Não foi - dizem os familiares das vítimas.
Todos foram executados friamente, sem que tivessem esboçado reação alguma.
E aí?
E aí que não há escândalo algum.
Muitos emudecem. A maioria emudece.
Aqui e ali ainda se ouvem esparsas manifestações de repulsa a essa hediondez sem tamanho.
São manifestações de repulsa que sempre têm como contraponto o seguinte argumento.
- Mas eles [os suspeitos] eram bandidos.
Quem disse?
Ninguém disse e ninguém diz que eram bandidos.
Ou por outra: ninguém diz e ninguém poderá dizer que os executados tiveram alguma participação na morte do cabo Cunha.
Quem autorizou a polícia a matar suspeitos?
Por que ninguém disse e ninguém pode dizer isso?
Porque a polícia fez o que não deveria fazer: matou primeiro para perguntar depois; matou primeiro para suspeitar depois; matou primeiro para levantar especulações depois; matou primeiro para investigar depois.
Mas, apenas para instruir este debate, vamos supor que os cinco executados tiveram, sim, participação direta na morte do cabo.
Vamos supor que foi assim.
Se foi assim, se os cinco participaram materialmente do assassinato – odioso, repulsivo, bárbaro, cruel – do cabo da Rotam, quem foi que autorizou a polícia a matar os cinco suspeitos?
Em que condições, em que circunstâncias, em que situação - quando, como, onde houve o confronto armado que resultou nas cinco mortes?
O “rigoroso inquérito” vai mesmo apurar isso com absoluta isenção?
Quem nos garante que vai apurar com absoluta isenção?
Qual é a polícia que queremos?
Mas, afinal, o que queremos nós, o que queremos todos nós?
Queremos paz, tranqüilidade e segurança.
Queremos a polícia presente nas ruas, sempre, durante as 24 horas.
Queremos a polícia equipada, ganhando bem, saneada dos maus policiais e respeitada.
Queremos a polícia preparada para dar um combate sem trégua à bandidagem.
Sem trégua, vale repetir.
Mas não demos e nem damos licença à polícia para matar a torto e a direito.
Não chancelamos e nem legitimamos ações policiais que se processam com métodos, com procedimentos e com recursos iguais – absolutamente iguais – aos escolhidos por bandidos da mais alta periculosidade.
Não queremos ter medo da polícia. Queremos respeitar a polícia.
Quem deve ter medo da polícia é o bandido, e não a sociedade.
E o bandido deve ter medo da polícia não porque a polícia executa bandido que acabou de executar policial.
Bandido deve ter medo da polícia porque a polícia age implacavelmente, rigorosamente, inapelavelmente, inafastavelmente com amparo na lei.
O bandido se sente autorizado a matar porque não respeita os códigos sociais, não respeita as convenções, porque ignora as leis, porque debocha de qualquer sentido de autoridade, porque despreza os mais rudimentares, os mais comezinhos, os mais primários princípios que regem as relações humanas.
O bandido mata o médico, mata o procurador, mata o advogado, mata o mais anônimo cidadão porque é um bandido, é um sem-lei, é um fora-da-lei.
O bandido mata o policial porque é um bandido, é um selvagem.
E quem autoriza a polícia a matar?
Ninguém.
A polícia não pode matar ninguém
A polícia não pode matar ninguém.
Não pode matar nem o facínora, nem o bárbaro, nem o selvagem, nem o pior bandido?
Não pode.
Não pode matar nem o facínora, nem o bárbaro, nem o selvagem, nem o pior bandido.
No dia em que dermos essa licença à polícia, nós mesmos, que demos a licença, poderemos ter nossa casa arrombada a pontapés e podemos ser executados.
Mas como, se somos inocentes?
Mas como, se somos gente de bem?
Podemos ser executados como suspeitos, ora essa.
E depois a polícia poderá dizer que matou porque enfrentou resistência.
Não é assim que sempre acontece com “os outros”?
Por que não pode acontece também conosco?
Quem nos garante que estamos imunes a essas barbaridades?
É assim.
A polícia não pode agir assim.
Se for assim, estaremos todos perdidos.
Se legitimarmos, se dermos licença, se aplaudirmos, se não censurarmos, se não exigirmos apurações e punições para as transgressões que aproximam a polícia da selvageria, então seremos selvagens todos nós.
E não haverá mais distinção entre bandido e polícia, entre mocinhos e bandidos, entre inocentes e culpados, entre acusados com “culpa formada” e simples suspeitos.
Será a barbárie, enfim.
Queremos a barbárie?
2 comentários:
Poster, concordo com todas as colocações, parabéns pelo texto muito bem argumentado, mas sinceramente, quero confessar algo:
"EU ANDO EM BELÉM MORRENDO DE MEDO DA POLÍCIA E DE BANDIDOS!!!".
E o que me dá mais medo? Não sei se é da polícia ou dos bandidos!
Parafraseando uma piada de Chico Anysio quando o motorista do ônibus freia, "Agora não sei mais quem é quem, misturou tudo!"
Perfeito!
Victor Picanço
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