Raimundo José Pinto, que com a torcida e o bem-querer de todos nós tem atualizado o seu excelente Pará Negócios, ainda que para isso tenha de superar limitações físicas, inaugurou um debate, um “Sim” e “Não” sobre temas polêmicas.
O primeiro traz a seguinte indagação:
Você acha que a decisão da Justiça do Pará contra fotos de crimes nas páginas dos jornais ameaça a liberdade de Imprensa?
Raimundo, gentilmente, convidou o editor do blog a participar do debate.
Defendemos o “Sim”.
O jornalista Lúcio Flávio Pinto defendeu o “Não”.
E você aí, o que acha?
Leia abaixo os dois artigos, que você pode acessar diretamente clicando aqui:
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Você acha que a decisão da Justiça do Pará contra fotos de crimes nas páginas dos jornais ameaça a liberdade de Imprensa?
NÃO
Sangria é contida
LÚCIO FLÁVIO PINTO *
Uma empresa jornalística é uma empresa comercial como outra qualquer? Esta é a questão de fundo da polêmica suscitada por uma decisão tomada na semana passada pela 4ª Câmara Cível Isolada do Tribunal de Justiça do Pará. Os integrantes da câmara acolheram, por unanimidade, o voto da relatora, desembargadora Eliana Daher Abufaiad. Através dela, proibiram três dos quatro jornais diários de Belém – o Diário do Pará, da família Barbalho, mais O Liberal e Amazônia, da família Maiorana – de publicarem fotos ou imagens de pessoas vítimas de acidentes, assassinatos e demais formas de mortes brutais, que ofendam a dignidade humana ou desrespeitem os mortos. A desobediência à determinação poderá acarretar multa diária de cinco mil reais.
A ordem judicial foi imediatamente interpretada, pelas empresas e suas extensões, explícitas ou camufladas, como uma odiosa censura prévia, que devolvia o Pará a uma perigosa situação de exceção, abalando a estrutura do estado democrático de direito. A justiça violava a proteção constitucional à liberdade de imprensa e se imiscuía indevidamente onde não tinha competência. A reação fez uso intenso da fórmula indicada para quando o interesse das corporações é contrariado. O protesto ecoou pelo país afora e no exterior, sem maior perquirição sobre o caso concreto.
A primeira e óbvia pergunta: por que o Público, o outro – e mais novo – jornal diário paraense, não foi atingido pela proibição judicial? Algum protecionismo, que podia ser atribuído à invisível mão do governo do Estado, que tem a generosa e muito favorável cobertura do jornal (à qual estaria retribuindo com publicidade oficial)? Não: é simplesmente porque o Público, nos seus cinco meses de existência, jamais publicou fotos de cadáveres despedaçados, estripados ou expostos à degradação pública.
É contra a iconografia mórbida e sensacionalista dos outros três jornais que se voltou a mão punitiva da justiça, acionada pelo Estado e duas entidades de representação da sociedade civil (a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos e o Movimento República de Emaús). A iniciativa veio depois de uma crescente manifestação de repúdio da população. Tanto por parte de pessoas diretamente interessadas, que eram obrigadas a ver os cadáveres de parentes ou amigos expostos nas páginas dos jornais, como do público em geral.
A providência não impediu os três jornais de continuarem a publicar seus vastos cadernos de polícia, com todas as notícias que constituem o cotidiano cada vez mais sangrento de Belém e de todo Pará, como o do último fim de semana, com 17 mortes a confirmar o estado de insegurança geral no Pará. As fotos que documentam visualmente as notícias também podem ser editadas sem qualquer problema. O veto foi apenas a “expor sem o menor cuidado” os corpos das pessoas mutiladas, assassinadas ou linchadas. E à utilização de “imagens chocantes ou brutais, sem qualquer conteúdo jornalístico, mas com intuito meramente comercial”, segundo os termos do acórdão da câmara do TJE.
Alguém teria outra classificação para a imagem da cabeça de um esqueleto, a única parte que sobreviveu do corpo de uma moça depois da explosão do carro que ela dirigia? Ou de um corpo retalhado em postas que foi encontrado no meio da rua? Ou o corpo desfigurado de um criminoso que foi linchado pela população?
Os donos dos jornais e seus homens de confiança (e, às vezes, cães de guardas), os editores, sabem muito bem quando se excedem. Sabem quando as fotografias, mais do que documentos de valor histórico ou meros registros da rotina do cotidiano, se tornam instrumentos de negócios, recurso para vender mais o produto, mercadoria. É raro cometerem abusos éticos ou morais por inadvertência. Consumam o sensacionalismo e a exploração de caso pensado, por prática de comércio, não pelo jornalismo.
Os excessos do passado, em condições semelhantes às atuais, levaram a imprensa a suspender a espiral de sangue e passar a dar um tratamento mais adequado ao noticiário policial, apesar das pressões dos insaciáveis revendedores e de certo público. Sumiram as fotos de “presuntos”, tão avidamente disputados pelos repórteres, e o espaço para o noticiário policial diminuiu. Foi uma característica auto-regulamentação: nenhuma força coercitiva impôs a mudança. Foi a exaustão da fórmula e certa reação do leitor mais bem informado e mais exigente.
A nova realidade, compatível com o jornalismo decente e benéfica ao leitor, foi quebrada e revertida, com agravantes, pelo Diário do Pará. O jornal foi além de tudo que fizera a imprensa paraense até então: ao invés de uma ou, no máximo, duas páginas num caderno (espaço geralmente dividido com o noticiário esportivo ou mesmo de variedades), o jornal do deputado federal Jader Barbalho criou um tablóide de seis páginas exclusivamente para as “matérias de polícia”. A criatura se encaixou no modelo de jornalismo popular que o Diário adotara.
O efeito não foi só o de aumentar as vendas: abriu o mercado dos anúncios populares, possibilitando ao jornal expandir seu caderno de classificados, um mercado no qual O Liberal nunca tivera competidor. O cidadão das faixas de menor renda, além de passar a comprar o jornal para acompanhar o único noticiário no qual é personagem (embora invariavelmente na caracterização de bandido), também começou a fazer pequenos anúncios, oferecendo ou buscando serviços, e a ler os anúncios. Criou-se uma especialização: anúncios do interesse do “povão” só saíam no Diário. O Liberal dominava da classe média para cima, um segmento de elite. Equilíbrio que se manteve até que o jornal dos Maiorana entrou em queda de parafuso.
Esse foi um dos efeitos do aumento do poder aquisitivo das faixas de renda mais baixas, fenômeno iniciado com a estabilização monetária no governo Fernando Henrique Cardoso e ampliado com o redistributivismo sob Lula. Não foi um objetivo conscientemente buscado pelo Diário do Pará, mas foi uma coincidência providencial – ou bem aproveitada. O conteúdo dos classificados do jornal a partir dessa época comprova o fato.
Outra prova é dada pela discretíssima – e surpreendente, para os padrões da “casa” – reação de O Liberal à ordem judicial, em contraste flagrante com a campanha diária que o jornal dos Barbalho desencadeou sobre o tema, fomentando a repercussão. Provavelmente o jornal dos Maiorana não se sente tão prejudicado, do ponto de vista comercial, que é o que prevalece, quanto seu adversário, que pode perder em vendagem de exemplar e de anúncio. Talvez porque O Liberal já não tenha condições de recuperar o terreno perdido na exploração do filão que se abriu.
Se a elevação do poder de compra das camadas C, D e E é o motor desse dinamismo, a realidade, que deu a Belém o título de a segunda capital mais violenta do Brasil, abaixo apenas de Recife, e, não por coincidência, a de renda per capita mais baixa (e das maiores taxas de desemprego e ocupação informal), é a matéria prima que a grande imprensa tem explorado ao máximo, sem veleidades éticas ou morais. Ela armou o picadeiro e escolhe os personagens conforme o impacto de suas tragédias.
A realidade da violência existe e a demanda pelo sangue, também. Como uma empresa comercial qualquer, a imprensa paraense apenas empacota os fatos e o oferece ao público, ávido por esses produtos, faturando também os anúncios do povo. É negócio em série com a miséria alheia. E o detalhe é decisivo: alheia. Sim, porque não se vê nenhuma tragédia envolvendo os donos do jornal, seus parentes e amigos, os editores, a corporação como um todo.
É um abuso que a imprensa comete de má fé: o corpo ensangüentado de um ”bacana” do topo da sociedade não tem a exposição a que é submetido o “Zé-Mané”. Os donos dos jornais e os seus seguranças, que detêm cargo de confiança ou coluna de opinião, sabem que os verdadeiramente ricos e poderosos não aceitam participar do portfólio do sangue impresso. Usam sua influência para prevenir essa exploração ou seu dinheiro para acionar os responsáveis, indo direto ao seu ponto mais sensível: o caixa. Por isso, mesmo quando as imposições do ofício ou do comércio exigem a abordagem do “beautiful people”, antes há confabulações e tratativas para definir como será editado o material. Quando é gente comum a envolvida, o que decide é o apelo sensacionalista, a possibilidade de vender mais.
Os jornais seguiram sua rotina de sensacionalismo, indiferentes à opinião pública. Ignoraram as sugestões de discutir a cobertura ou estabelecer um pacto arbitrado pelo fiscal da lei, o Ministério Público, ou qualquer forma de auto-regulamentação, que expurgasse os exageros flagrantes. De fato, é sempre delicada ou temerária a intervenção de um poder institucional numa seara na qual os fatores subjetivos e os juízos de valor têm um peso considerável. O ideal é que a regulação resulte do movimento natural de divulgação de informações e de seu eco na opinião pública, cada parte desempenhando o papel que lhe cabe numa sociedade livre e democrática, uns apoiando e outros criticando.
Mas qual a contribuição que o jornalismo policial da imprensa paraense dá a esse estado democrático de direito, no qual só pensa quando seu interesse econômico é alcançado? Os jornais não podem continuar a cobrir livremente todos os fatos sem carregar nas tintas vermelhas da fotografia? Qual o prejuízo verdadeiramente editorial que essa privação causa à informação dos leitores? Não está na hora de as empresas pensarem um pouco mais no pão do que no circo, que transformaram em arena dos horrores por sua irresponsabilidade?
Elas podiam discutir esses temas com a sociedade, por sua própria iniciativa, ou quando suas responsabilidades fossem cobradas. Como a ação civil pública não foi concedida liminarmente pelo juiz de primeiro grau, Marco Antônio Castelo Branco, para quem o processo foi distribuído, as empresas acionadas nem se deram ao trabalho de contestá-la. Até hoje não foram intimadas a se manifestar na instrução processual, que estancou. Como sempre acontece nesses casos, os oficiais de justiça não conseguiram encontrar os responsáveis pelos três jornais, que se protegem e se tornam inacessíveis aos geralmente longos braços (ou tentáculos) da justiça.
Por causa dessa omissão, a desembargadora Eliana Abufaiad, relatora do recurso contra a decisão de Castelo Branco, precisou intimar a parte adversa para poder haver contraditório no agravo de instrumento, que foi acolhido pela câmara cível, sem a manifestação dos agravados. Esse é o respeito que as empresas têm pela justiça, o cidadão e o direito à livre informação?
É uma responsabilidade grave porque acontece de um direito subjetivo, como é o da imprensa, colidir com outro direito subjetivo, o da imagem e da dignidade da pessoa. O critério para a definição de qual deles deve prevalecer pode ser o da proporcionalidade, como foi o princípio adotado pela desembargadora Abufaiad, através do qual ela concluiu que houve “verdadeiro abuso” do direito de informar por parte das empresas sobre o respeito à dignidade da pessoa e aos mortos.
Quem diz que da decisão pode resultar involução na ordem democrática pode até entender de ordem, mas nada sabe de democracia. Em nenhum momento ela foi ameaçada pela decisão da 4ª câmara cível da justiça paraense. Pelo contrário: talvez, se os ventos da boa inspiração continuarem a soprar, os jornais encontrem um novo rumo, melhor do que o mau caminho que adotaram.
*Jornalista, editor do JORNAL PESSOAL
SIM
Uma perversão
PAULO BEMERGUY *
Estou convicto, sim, de que a recente decisão da Justiça do Pará, proibindo a divulgação de fotos de crimes nas páginas dos jornais, é uma ameaça à liberdade de Imprensa.
Já expressei claramente esse juízo no blog Espaço Aberto, que edito, quando me opus tanto à decisão que mandou retirar postagens do Quinta Emenda, de Juvêncio de Arruda, como à que determinou a três jornais de Belém, - O LIBERAL, Diário do Pará e Amazônia – que evitem “a publicação de fotos/imagens de pessoas vítimas de acidentes e/ou mortes brutais que impliquem ofensa à dignidade humana e ao respeito aos mortos.”
Jornais têm linhas editoriais definidas. Têm estilos.
Em qualquer banca de jornal de Londres, você passa e vê expostos os jornais sensacionalistas.
Você, mesmo que não os tenha lido – ou que os tenha lido apenas uma vez -, sabe o que eles contêm. Sabe perfeitamente como eles tratam uma informação.
E você compra esses jornais se quiser.
Inclusive, se quiser, compra-os apenas para ter o prazer de jogá-los no lixo.
Em qualquer banca de revista da avenida Presidente Vargas, em Belém, você encontrará várias gêneros de publicação.
Encontrará, inclusive, publicações eróticas.
Você, mesmo que não as tenha lido – ou que as tenha lido apenas uma vez -, sabe o que elas contêm.
Você compra as publicações eróticas se quiser.
Inclusive, se quiser, poderá comprá-las para atirá-las na latrina e dar a descarga. Ou então poderá queimá-las na Praça da República.
O editor responsável por uma publicação qualquer deve ter a liberdade de publicar o que quiser.
A quem caberá aferir a qualidade editorial?
Ao leitor.
A quem caberá decidir se esta ou aquela publicação deve merecer crédito ou descrédito?
Ao leitor.
Alega-se que o direito à informação, que o exercício da liberdade de Imprensa não é absoluto.
E quem, algum dia, disse que é?
Se alguém, algum dia, disse que o direito à informação é absoluto, só pode ter dito uma brincadeira.
Claro que o direito à informação, à liberdade de expressão não é absoluto.
Numa democracia, num Estado de Direto, em qualquer sociedade civilizada onde predominem os mais reluzentes conceitos sobre liberdade, nenhum direito é absoluto.
Nem o direito à vida é absoluto, porque é permitido a uma pessoa matar a outra, em casos extremos de legítima defesa ou de estado de necessidade, por exemplo.
Por que, então, o direito à informação deveria ser absoluto?
E de que forma pode-se constrigir, limitar, estabelecer parâmetros para a liberdade de Imprensa?
Através de leis em vigor no País.
Assim, o editor deve estar livre, inteiramente livre para publicar o que quiser. Mas ele responderá legalmente por ofensas, calúnias, difamações, enfim, por qualquer inverdade que vier a publicar.
Uma vez processado, ele, o autor da publicação, deve livremente escolher a conduta a adotar: ou continua a publicar tudo aquilo que deu ensejo à ação ou para.
Mas ele é que deve decidir isso.
Num cenário como esse, teríamos dois direitos garantidos: o do autor de uma publicação, de publicar tudo o que quiser, e o direito da vítima, de pedir em juízo a reparação por danos eventuais à sua honra.
Uma das alegações que se apresenta nessa discussão é a de que jornais deixam de publicar informações por interesses comerciais ou por conveniências políticas.
É verdade.
É condenável?
É.
Essa autocensura é censurável?
É.
Mas essa decisão, esse critério, essa avaliação – de publicar ou não certa notícia, de divulgar ou não determinada foto, de dar este ou aquele tratamento a uma certa informação – deve ser dos jornais, e não do Poder Judiciário ou de quem quer que seja.
Os jornais, com essa postura, submetem-se igualmente ao crivo do leitor, conforme já mencionado.
Os leitores sabem o nível de independência dos jornais que compram.
E conforme essa avaliação, continuarão a comprar esses jornais se quiserem.
Convém, por tudo isso, que todos evitemos a censura.
Porque a censura, estou convicto, é uma perversão.
Uma grande perversão da liberdade que todos devem ter e cultivar.
Com responsabilidade e equilíbrio.
* Jornalista, editor de O LIBERAL e do blog Espaço Aberto
Um comentário:
Prezado PB,
As posições tanto do Lúcio como as suas apresentam argumentos consistentes, lógicos e, portanto, fortes. Assim, é difícil dizer quem tem razão porque, não raro, a verdade possui muitas facetas ou variantes.
Digo isto com certa hesitação porque me julgo um realista moral, que abomina, portanto, o relativismo moral, tão comum nos dias de hoje.
Mas, entre o Lúcio e vc, fico com sua posição porque, embora tenha havido notório abuso dos jornais na divulgação de imagens que abominam e chocam a opinião pública, há, todavia, um valor mais alto em jogo, que é o de delegar ao Poder Judiciário o que devemos ou podemos ler ou ter acesso.
Permitir ou consentir com tal posição é sacrificar as liberdades negativas fundamentais. Neste aspecto, vc tem razão: ter que optar entre os abusos, que podem ser corrigidos pela via judicial, e delegar ao Judiciário o poder para decidir o que pode ou não ser divulgado, fico com a primeira posição. E o exempo inglês, berço do liberalismo político, serve como modelo a ser seguido, sobretudo porque na AL prevalece, ainda, um forte componente caudilhista e o Judiciário não está infenso a receber tais influências deletérias de ordem política.
Abs.
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