domingo, 28 de junho de 2009

Libertar o sofrimento


Na antiguidade helênica e romana, várias doenças, como tantas outras coisas, eram atribuídas à ação de deuses, demônios e forças sobrenaturais. Na verdade, não existia uma parte da ciência médica que pudesse ser chamada de psiquiatria. Os transtornos nervosos e mentais, na maioria das vezes, não eram considerados doenças. O transtorno emocional sempre foi um fenômeno social interpretado de diversas maneiras, conforme a época. O cristianismo, no início de nossa era, via a loucura com bastante respeito.
Dia desses, nosso grande poeta Ferreira Gullar provocou controvérsia, com sua coluna na Folha de S.Paulo, ao pedir a revogação da lei que praticamente acabou com os hospitais psiquiátricos mantidos pelo governo. Em 2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica estabeleceu que a internação em hospitais psiquiátricos, fosse o último recurso no cuidado de doentes mentais. A recomendação passou a ser o tratamento ambulatorial e a reinserção social dos pacientes, sob os cuidados da família. Para Gullar, "é hora de revogar essa lei idiota que provocou tamanho desastre".
Quem nunca entrou num hospital psiquiátrico imagina que todo tipo de loucura acontece lá dentro. Tem-se a concepção errada que lá estão os que "perderam a razão", pessoas que passam o tempo imitando pessoas ou querendo agredir a todos, quais animais ferozes. Este mundo de pesadelos, onde dão choques elétricos e amarram gente furiosa nas camas, tem um poder enorme sobre nós.
O escritor lembrou que certa vez um "deputado petista" declarou que as famílias dos que sofrem de afecções psiquiátricas os internavam para se livrar deles. E retrucou: "E eu, que lidava com o problema de dois filhos nesse estado, disse a mim mesmo: ‘Esse sujeito é um cretino. Não sabe o que é conviver com pessoas esquizofrênicas, que ameaçam se matar ou matar alguém. Não imagina o quanto dói a um pai ter que internar um filho, para salvá-lo e salvar sua família. Esse idiota tem a audácia de fingir que ama mais meus filhos do que eu’", escreveu Gullar.

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“A humanização da psiquiatria é apenas o início de uma longa caminhada, pois os hospitais psiquiátricos, até algum tempo, eram verdadeiros depósitos de doentes.”
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Nossa sociedade teme o transtorno mental, rejeita-o e a imagina como um inferno onde não existe qualquer razão. Raciocinando assim, temos a impressão de que somos perfeitos, normais, completamente razoáveis. Nossa sociedade é boa e correta (será?). Porque acham que nela tudo é lógico. A falta de lógica é doença. Assim, traçamos um limite entre normalidade e a loucura. Nesse limite, geralmente, encontra-se o muro do asilo ou o rótulo de paciente psiquiátrico. Do lado de cá estão os sadios, do lado de lá, os loucos. Se não nos comportamos direitinho, seremos mandados para o lado de lá.
Um hospital psiquiátrico por dentro se parece, em geral, com um hospital muito pobre. Às vezes, como uma prisão. Os pacientes são pessoas quietas, angustiadas e tristes, isoladas entre si. Sentem-se abandonadas, sem planos nem esperanças. Os grandes hospitais (hoje já não existem) lembram mais um povoado de mendigos do que uma clínica. Tinham muito pouco daquela loucura espetacular e cômica que se imaginava. E muito pouco daquela fúria animal, perigosa, que se teme.
O problema do fim dos hospitais psiquiátricos argumenta Gullar, é que as famílias ricas têm a opção das clínicas particulares com salas de cinema, piscinas e campo de esportes. No caso das mais pobres, todos saem para trabalhar, o doente fica sozinho em casa, deixa de tomar os medicamentos necessários e entra em estado delirante: "Não há alternativa senão interná-lo".
Em carta ao jornal, o Conselho Federal de Psicologia repreendeu Gullar, manifestando-se favoravelmente à lei que instituiu um novo modelo de tratamento aos transtornos mentais no Brasil. Já o leitor, Luis Fernando Tófoli, doutor em psiquiatria pela USP, foi agressivo ao retrucar que o termo cretino - usado por Gullar - é um antigo diagnóstico psiquiátrico que nomeia os portadores de cretinismo, retardo mental causado pelo hipotireoidismo congênito, escreveu Tófoli (cretino, também é sinônimo de mau caráter).
O poeta Gullar tem lá suas razões, talvez, a libertação do sofrimento. A busca por uma boa psiquiatria não depende de iniciativas particulares. Nem depende da boa vontade de um grupo de profissionais. Ela depende, em primeiro lugar, de uma ampla discussão entre os trabalhadores da saúde mental e a população. Depende, em segundo lugar, dos órgãos públicos. A humanização da psiquiatria é apenas o início de uma longa caminhada, pois os hospitais psiquiátricos, até algum tempo, eram verdadeiros depósitos de doentes.

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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com

Um comentário:

Tófoli disse...

Olá, Sergio

Não entendi muito bem a razão de você ter classificado como agressiva minha pontuação sobre a qualificação como "cretino" que Ferreira Gullar fez sobre o autor da proposta original da lei. Entendo as razões do poeta e de sua discordância, mas não concordo com o uso do xingamento.

Meu ponto foi demonstrar que o termo 'cretino' já foi um diagnóstico psiquiátrico, como hoje o é 'esquizofrênico' (palavra que já é também usada como xingamento) e assim apontar como é sutil o estigma do transtorno mental...