sexta-feira, 13 de junho de 2008

Se ainda houver juízes neste País


“O indeferimento do registro de candidatos notoriamente ímprobos é uma premente necessidade, é um ato irrecusável de legítima defesa da ordem democrática, posto que tais candidaturas são incompatíveis com a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, protegidas pela Constituição.”

A recente decisão do TSE, permitindo o registro da candidatura de notórios corruptos que ainda não tiveram contra si uma sentença condenatória transitada em julgado, embora sejam réus em diversos processos e até condenados em primeira ou segunda instâncias, veio de braços dados com as traças do mais carcomido conservadorismo, e, sem querer fazer trocadilho, constitui um erro de altíssimo grau, pelo qual o País continuará a pagar um preço incalculável.
No sistema brasileiro da hierarquia das leis, é inadmissível que a lei complementar prevaleça sobre a Constituição.
Se a Carta Magna diz que a lei complementar "estabelecerá outros casos de inelegibilidades, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato", como se lê, com todas as letras, no § 9º do seu artigo 14, obviamente não pode a lei complementar deixar de garantir essa proteção.
Se a lei complementar assim não o faz, porque é omissa ou insuficiente para proteger o que a Constituição expressamente manda proteger, caberá, sem dúvida, ao juiz, ao aplicá-la, atender "aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum", como recomenda o artigo 5º da velha Lei de Introdução ao Código Civil, de 1942.
O fim social a que a se destina lei complementar que dispõe sobre os casos de inelegibilidade é proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do pretendente. Por conseguinte, sob o manto sagrado da lei não se podem albergar vidas pregressas tão abertamente incompatíveis com o que a mesma lei visa proteger.
Longe, pois, de configurar usurpação da competência legislativa, a decisão do juiz eleitoral, nesses casos, deve necessariamente considerar que o legislador pátrio, ao exigir, na lei complementar, o trânsito em julgado da sentença condenatória como conditio sine qua para configurar a inelegibilidade dos corruptos processados e, muitas vezes, já condenados por Tribunais de Contas ou instâncias judiciais, produziu, ipso facto, uma evidente fraude, uma inequívoca burla aos objetivos da própria lei, pois é mais do que sabido que o Supremo Tribunal - última instância do nosso sistema judicial - jamais condenou um só político corrupto em toda a sua longa história (não por falta de matéria-prima).
Em que pese a clareza desse raciocínio, quatro dos sete juízes do TSE, brandindo um positivismo legalista e meramente burocrático, reflexo do espírito de amanuense de seus expositores - que, diga-se de passagem, em última instância, como magistrados, deviam proteger os direitos da sociedade e não os da bandidagem -, e a pretexto de "evitar o caos", travestiram-se como novos Cavaleiros do Apocalipse, legitimando a continuidade da desordem hoje reinante.
E isso é tudo o que a lei eleitoral não quer e nem jamais pode querer!
Todavia, a malsinada decisão foi tomada por apertada maioria de votos, felizmente volúvel por força da renovação do mandato dos juízes eleitorais a cada dois anos.
Resta, pois, a esperança de que os magistrados eleitorais de primeiro grau, que já vinham ensaiando decisões mais arrojadas em sentido contrário, persistam na mesma trilha por eles aberta, construindo a jurisprudência de baixo para cima, invertendo o costume das cúpulas dominarem as bases, até porque, neste caso, são as bases que têm muito a ensinar às cúpulas.
O indeferimento do registro de candidatos notoriamente ímprobos é uma premente necessidade, é um ato irrecusável de legítima defesa da ordem democrática, posto que tais candidaturas são incompatíveis com a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, protegidas pela Constituição.
Que os juízes eleitorais de primeiro grau, portanto, não se deixem intimidar pela ameaça de, num grau recursal mais alto, terem as suas decisões progressistas derrubadas por acórdãos visivelmente corroídos pelas traças vorazes do atraso e da promiscuidade.
Permitam-me os magistrados eleitorais de primeira instância uma sugestão: espantem o medo de inovar, colocando em frente a cada pedido de registro de candidato a célebre fala de Ruy Barbosa, mais atual do que nunca:
- "Queria dizer, boa é a lei, quando executada com retidão. Isto é: boa será, em havendo no executor a virtude que na legislação não havia."
Se isso não for o bastante para escudar a coragem de ousar em benefício do bem comum, continuem, por favor, a leitura de Ruy, na mesma peça:
- “Só a moderação, a inteireza, a eqüidade, no aplicar das más leis, as poderiam, em certa medida, escoimar da impureza, dureza e maldade que encerrarem. Ou, mais lisa e claramente (...) mais vale a lei má, quando inexecutada, ou mal executada (para o bem), do que a lei boa, sofismada e não executada.”
Com tais palavras em mente, o povo espera que cada juiz eleitoral de primeiro grau saiba exercer o seu indeclinável dever de expurgar da lei de inelegibilidades a fraude que ela própria encerra, pois é esse, precisamente, na lição irrefutável do grande Ruy, o grande e verdadeiro papel da Justiça:
- "Que imensurável, que, por assim dizer, estupendo, logo, não será, em tais condições, o papel da Justiça! Porque, se dignos são os juízes, como parte suprema, que constituem, no executar das leis - em sendo justas, lhes manterão eles a sua justiça, e, injustiça, lhes poderão moderar, se não, até no seu tanto, corrigir a injustiça."
Ora, não é justo que uma lei, um juiz ou um Tribunal permitam que bandoleiros tomem contra dos cofres públicos.
Parodiando e atualizando Lacerda, em sua campanha contra a Getúlio na década de 1950: o candidato que vive em flagrante e constante "namoro com a delitividade" não pode ser registrado; registrado, não pode ser eleito; eleito, não pode ser diplomado; diplomado, não pode tomar posse, e, empossado, não pode exercer o mandato.
Em algum momento dessa extensa via-crúcis haverá de ter alguém que abata, em pleno vôo, essas aves de rapina, pondo-se, finalmente, o erário público, a salvo dos seus contumazes assaltantes.
Isto é, se ainda houver juízes neste País!

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(*) Procurador de Justiça aposentado e advogado. Ex-docente de Direito Eleitoral da ESM/PA e da ESMP/PA.

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