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terça-feira, 6 de janeiro de 2009
Novas eleições em Santarém
Formula-me este blog algumas indagações acerca do rumoroso caso da ex-prefeita reeleita de Santarém - caso único em todo o Brasil - que provocou, como não podia deixar de provocar, perplexidade no mundo jurídico e, sobretudo, no mundo político. Tais indagações direcionam-se para questões práticas no caso de realização de novo pleito naquela cidade, se a decisão do TSE, que negou registro à candidata, for mantida pelo STF.
Devo dizer que o imbróglio era perfeitamente previsível e só surpreendeu os pouco afeitos ao Direito Eleitoral. Em artigo publicado no Informativo do Ministério Público do Estado do Pará (edição nº 2, de abril/maio/junho-2008, p.10/18), registrei, minuciosamente, o intenso vém da legislação e das decisões jurisprudenciais (desde a promulgação da Constituição de 1988) sobre o exercício da atividade político-partidária por membros do Ministério Público, objeto de flagrante antinomia da própria Carta Magna que, em sua redação originária, ao mesmo tempo vedou e permitiu essa atividade, ao juntar à proibição a velha e traiçoeira ressalva das "exceções previstas em lei."
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“A biruta jurisprudencial do TSE soprou para o lado contrário aos interesses da ex-prefeita reeleita. Mas não pôs fim ao caso. A votação do TSE foi apertadíssima, por 4 x 3, o que bem demonstra que o tema ainda não está de todo pacificado.”
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O titubeante ordenamento legal e jurisprudencial sobre a matéria tem gerado, com efeito, extremada insegurança jurídica, de modo que a ninguém era dado dizer, com certeza, o que seria válido, sobre o tema, nas eleições de outubro do ano passado. Tanto que eu assim concluí aquele mesmo artigo com a seguinte observação: "Resta, portanto, esperar para ver para que lado soprar, nas eleições de 2008, a biruta jurisprudencial do TSE."
A biruta jurisprudencial do TSE soprou para o lado contrário aos interesses da ex-prefeita reeleita. Mas não pôs fim ao caso. A votação do TSE foi apertadíssima, por 4 x 3, o que bem demonstra que o tema ainda não está de todo pacificado. Bastaria que apenas um dos votos contrários mudasse de lado, para que a reeleição da candidata fosse confirmada.
Na verdade, falta, ainda, o pronunciamento final e definitivo do STF, que é a quem compete, em última análise, decidir sobre a questão constitucional de fundo que causou todo esse quiproquó - ou seja, se a proibição de exercer atividade político-partidária, imposta aos membros do Ministério Público pela EC nº 45/2004, que expurgou a antinomia do texto originário da Constituição, alcança, ou não, os membros do Ministério Público que ingressaram na carreira antes da promulgação dessa emenda - que é, precisamente, o caso da ex-prefeita reeleita.
Abstraídas as tentativas de obtenção de provimento liminar, por via de medidas cautelares, para permitir a diplomação e a posse nas datas previstas no calendário eleitoral, tentativas essas não conhecidas por razões meramente processuais, o STF ainda não decidiu, e nem se sabe quando decidirá, em caráter final, sobre aquela questão de fundo, o que deverá ocorrer somente quando for julgado o mérito do recurso extraordinário interposto contra o acórdão do TSE que cassou o registro da candidata.
Se essa decisão de mérito for prejudicada por questões estritamente processuais, tão do agrado do sistema judiciário brasileiro, ou se a decisão de mérito do STF mantiver a decisão anterior do TSE, caberá ao TRE marcar nova eleição, nos termos do artigo 224 do Código Eleitoral, e isso ocorrerá porque a ex-prefeita obteve mais de 50% dos votos válidos, que, uma vez mantida a sua inelegibilidade, serão declarados nulos, ficando prejudicada a eleição anterior.
Para a renovação do pleito - exclusivamente para os cargos majoritários de prefeito e vice-prefeito - o TRE editará nova "resolução fixando as regras e o calendário a ser observado no pleito", conforme o pronunciamento já firmado pelo TSE (Resolução nº 22.087 - Consulta 1140-DF, de 20/09/2005, relator Min. Gilmar Mendes). É certo que, renovando-se a eleição, "reabre-se todo o processo eleitoral", conforme também já definido pelo TSE (Acórdão em REsp Eleitoral nº 25.436-ES, de 30/05/2006, relator Ministro Gerardo Grossi).
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“Apesar do Código Eleitoral dizer que o TRE marcará dia para a realização de nova eleição no prazo de 20 a 40 dias, o TSE, certamente atento ao princípio da razoabilidade, já decidiu que é necessário aguardar o trânsito em julgado da decisão que, reconhecendo a inelegibilidade da candidata mais votada, acarretou a nulidade dos votos por ela obtidos, e, por via de conseqüência, a da eleição anterior.”
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Obviamente, "na renovação do pleito, por se tratar de situação excepcional, os processos de registro [de candidatos] merecem tratamento específico e diferenciado dos demais, interpretando-se de forma sistêmica as normas eleitorais, inclusive se levando em conta o princípio da razoabilidade" (Acórdão em REsp Eleitoral nº 21.241-GO, relator Ministro Fernando Neves - DJU de 29/08/2003).
Assim, em que pese o artigo 224 do Código Eleitoral dizer que o TRE marcará dia para a realização de nova eleição no prazo de 20 a 40 dias, o TSE, certamente atento ao princípio da razoabilidade acima aludido, já decidiu que é necessário aguardar o trânsito em julgado da decisão que, reconhecendo a inelegibilidade da candidata mais votada, acarretou a nulidade dos votos por ela obtidos, e, por via de conseqüência, a da eleição anterior. E isso porque, segundo o TSE, "há necessidade de se prevenir a perturbação que decorreria de uma nova eleição, enquanto não houver o acertamento judicial definitivo sobre a elegibilidade ou não" (Acórdão em MS nº 3.275-PE, de 15/05/2005, relator Min. Luiz Carlos Madeira).
A reabertura do processo eleitoral abrange, naturalmente, todas as suas fases: das convenções partidárias para a definição de coligações e escolha de candidatos até à diplomação dos eleitos, de acordo com o novo calendário eleitoral que será fixado na resolução do TRE que marcar o dia da nova eleição.
Os casos de inelegibilidade e de desincompatibilização são os mesmos, e atenderão aos mesmos prazos previstos na Constituição Federal e na Lei de Inelegibilidades (LC nº 64/1990), mas "serão aferidos no processo de registro [das novas candidaturas], seguindo como parâmetro a data do novo pleito", conforme já decidiu o TSE (Acórdão em REsp Eleitoral nº 25.436-ES, de 30/05/2006, relator Ministro Gerardo Grossi).
Obviamente, não é possível abarcar nas modestas dimensões deste artigo todas as situações possíveis em cada pleito, o que demanda alentados cartapácios de que têm sido pródigas nossas editoras jurídicas. Mas, respondendo às indagações do blog, é possível dizer, com algum grau de certeza respaldada nas decisões do TSE, que:
* "o candidato que deu causa à nulidade da eleição anterior" não poderá participar do novo pleito (Acórdão em /REsp Eleitoral nº 26.018, de 12/-6/2007, em REsp Eleitoral nº 26.140, de 12/06/2007 e em REsp Eleitoral nº 02/08/2007);
* o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, da ex-prefeita, evidentemente não poderão concorrer à nova eleição (CF, art. 14, § 7);
* os secretários municipais, os quaisquer servidores públicos na jurisdição do pleito, que não tiverem se desincompatibilizado no prazo previsto na LC nº 64/1990, tomando-se por base a data do novo pleito, também não poderão concorrer ao novo pleito;
* no caso dos secretários municipais ou quaisquer servidores públicos na jurisdição do pleito terem se desincompatibilizado regularmente por ocasião da eleição anulada e voltado a ocupar os cargos de origem, o TSE tem admitido que "é suficiente que se afastem nas 24 horas seguintes à sua escolha em convenção, para que se torne viável a sua candidatura ao novo pleito" (Acórdão em REsp Eleitoral nº 25.436-ES, de 30/05/2006, relator Ministro Gerardo Grossi);
* Os vereadores eleitos no pleito de outubro de 2008 e empossados em 1º de janeiro de 2009 não são, só por isso, inelegíveis para concorrer ao cargo de prefeito ou vice-prefeito na nova eleição, pois não se enquadram "em qualquer das hipóteses da LC nº 64/1990" (Acórdão em REsp Eleitoral nº 21.241-GO, relator Ministro Fernando Neves - DJU de 29/08/2003).
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LUIZ ISMAELINO VALENTE é advogado, Procurador de Justiça Aposentado e ex-professor de Direito Eleitoral na Escola Superior da Magistratura do Pará e na Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Pará.
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
A mudança do traçado da 25 de Setembro
Sei não, mas a liminar do juiz que manda a prefeitura mudar em 120 dias o traçado da Avenida 25 de Setembro me parece totalmente equivocada.
Essa avenida é o único projeto urbanístico público em Belém que prioriza a "qualidade de vida" dos moradores. Esse é o ideal de vida nas grandes cidades. A criação de mais espaços com a mesma característica é a aspiração máxima dos que vivem nesses enormes hospícios em que se transformaram as metrópoles. Transformar a 25 de Setembro numa via de linha reta e de velocidade só piora a qualidade de vida do local e põe em risco cotidiano a vida dos seus moradores. Quem responderá pelas mortes que faltalmente ocorrerão com a transformação da 25 numa pista de Fórmula 1? O juiz? O promotor?
O sacríficio do bem-estar dos moradores em favor "de toda a coletividade", como diz o juiz, é uma balela. Qual a "coletividade" que se quer beneficiar com a mudança? A elite econômica que tem carro? Por que os direitos destes são mais nobres do que os dos pacíficos moradores (dentre estes muitos idosos, crianças, pessoas enfermas) da Avenida 25 de Setembro?
Outra grande balela é o argumento de que o atual traçado contribui para o tráfico de drogas e a prostituição. Na Almirante Barroso, na Pedro Álvares Cabral, na Nazaré, na Gentil, na Conselheiro, na Presidente Vargas e em tantas e tantas outras ruas em linha reta não tem tráfico de drogas nem prostituição? No CAN, na Praça da República, no Reduto, na Cidade Velha e em todos os bairros de Belém - viu, senhor juiz? -, o tráfico e a prostituição campeiam abertamente, nocauteando as autoridades de qualquer quilate, que deveriam combatê-los onde quer que existam.
Em quê a mudança do traçado da 25 de Setembro vai melhorar o meio ambiente? Com o aumento da poluição do ar pela emissão do carbono dos automóveis? O que se entende por meio ambiente? Pensam que meio ambiente é só grama e paisagismo raquítico como na Nova Duque, que não tem sequer uma calçadinha no canteiro central para um cooperzinho básico?
O "caos do trânsito" em Belém é realmente terrível. Mas, a retidão do traçado de uma só rua não vai resolver coisíssima nenhuma. Quando mudaram a sede do Tribunal de Justiça para a Almirante Barroso, disseram que ia "desafogar" o "caos do trânsito" na Praça Felipe Patroni. Desafogou? Que nada!
A verdade é que Belém não tem para onde crescer, senão para trás, feito rabo de cavalo. A cidade não comporta o aumento desenfreado, assustadoramente crescente, da frota de veículos a cada ano, para gáudio apenas do Detran, que arrecada o IPVA. Os leitos das ruas são péssimos, nem o asfalto eleitoreiro dá jeito. Daqui a pouco, teremos de andar carregando nossos carros na cabeça, porque não tem mais lugar para estacionar. Em cidades como São Paulo, carros são proibidos de trafegar em determinados dias. Mas, em vez de se melhorar o leito das ruas, de se reduzir a frota ou de se estabelecer o rodízio de carros, únicos modos de melhorar um pouco - só um pouco! - o trânsito numa cidade que está a ponto de explodir de tão cheia de carros, os sábios de Sião da justiça alternativa, auto-intitulada "de vanguarda", impõem um inaceitável "retrocesso" e acabam com a única rua da cidade em que realmente tem valido a pena viver (e eu não moro nem nunca morei lá, infelizmente!).
Como sempre digo: cada qual devia fazer só o que cabe a cada qual. Daria mais resultados. Promotor não é prefeito, juiz não é governador. A concepção urbanística de uma artéria, de um bairro, de um setor da cidade é assunto eminentemente de administração pública, de políticas públicas. Promotores e juízes, como "agentes políticos" que são, devem lutar pela fiel implementação das políticas públicas, mas não lhes cabe impor, como políticas públicas, aquilo que não passa de "achismo" de suas próprias idiossincrasias.
O orçamento público não é casa-da-mãe-joana, não se presta para improvisações nem para arroubos de promotorite ou de juizite.
A mudança de uma concepção urbanística como a da Avenida 25 de Setembro - que há décadas já vem sendo discutida, não é nenhuma novidade -, no mínimo é uma matéria altamente polêmica, o que, por si só, deveria afastar a temeridade de uma liminar (que é uma decisão provisória, sem o julgamento final do mérito), que, no caso, se tornou, como dizem os bacharéis, "satisfativa", ou seja, o juiz já deu definitivamente aquilo que, ao fim e ao cabo, pode até vir a ser negado, quiçá em instância superior...
Direito difuso, embora difuso, é um direito real, não virtual, não imaginário, que não se inventa, porque é um direito de todos de fato pré-existente. Quando o direito não é de todos, mas só de uma parte ou de um segmento, não é lícito priorizar o direito de uns em detrimento do direito de outros, porque assim estaríamos apenas trocando seis por meia dúzia e nada ficaria resolvido.
Numa época em que o "orçamento participativo" já se tornou um instrumento corriqueiro de planejamento e gestão, por que não deixar a própria comunidade dizer o que ela quer sobre a permanência ou a mudança do traçado da Avenida 25 de Setembro? Impor essa decisão judicialmente me parece demasiadamente abusivo e arbitrário.
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LUIZ ISMAELINO VALENTE é advogado, procurador de Justiça aposentado e agraciado em abril de 2008, no Hangar, pela Abrampa (Associação Nacional do Ministério Público de Meio Ambiente), como um dos "pioneiros na defesa jurídica do Meio Ambiente no Estado do Pará".
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
É preciso que cada qual faça o seu cada qual
O problema deste País é que ninguém sabe mais a quem compete fazer o quê.
Eu sou de um tempo em que as funções no aparelho judiciário eram muito bem definidas: a polícia investigava, o Ministério Público processava e o juiz julgava.
Hoje, a polícia julga e executa (por exemplo, expondo os presos à execração pública, que é a pena mais cruel nos dias de hoje) e os juízes e promotores tiram onda de bate-pau, envergando ridículos coletes pretos com letras amarelas e exibindo óculos escuros de grife, em ridícula blitz, que quase sempre é meramente pirotecnica.
É por isso que a Defensoria Pública, teleologicamente encarregada da defesa de direitos individuais, arvora-se a propor, ampara por lei nitidamente inconstitucional, ação civil pública, destinada exclusivamente à tutela de interesses difusos e coletivos, sobrepondo-se à legitimidade do Ministério Público, das pessoas jurídicas de direito público e das organizações não governamentais que tenham por finalidade estatutária a defesa destes interesses supraindividuais.
É por isso que a Abin se mete a fazer as vezes da Polícia Federal. Por que diabos a Polícia Rodoviária Federal também quer fazer escuta telefônica? Ninguém telefona para dizer que nas estradas vai avançar sinal, ultrapassar pela direita, imprimir excesso de velocidade ou dirigir embriagado... Só pode ser mesmo para espionar!
E é por isso que tem candidato a vereador prometendo legislar sobre segurança pública, matéria da competência do Estado e da União, ou seja, sobre a qual as Câmaras Municipais não têm, talvez, o menor poder de decisão, ou, se tiver, é coisa pouca.
Agora me vem o Conselho Nacional de Justiça impondo "regras para a atuação dos juízes" sobre a quebra de sigilo telefônico.
Ora, ora, ora... Ao CNJ, criado pela EC nº 45/2004, compete, unicamente, "o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes" (Constituição Federal, artigo 103-B, § 4º).
Quer dizer, o CNJ não pode meter o bedelho na atuação jurisdicional - processual - dos juízes. Pode, tão somente (e isso já é muito), controlar os atos administrativos e a gestão financeira dos órgãos do Poder Judiciário, bem como a infração aos deveres funcionais dos magistrados (aspecto disciplinar).
Autorizar ou não autorizar a quebra de sigilo telefônico não é ato administrativo do juiz, é ato típicamente jurisdicional (que vem do latim jusrisdictio, jurisdição, ou seja, o poder do Estado de dizer o direito).
O CNJ não pode, de forma alguma, legislar sobre processo e jurisdição. Quando o faz, usurpa a competência legislativa do Congresso Nacional (Constituição Federal, artigo 61) e fere o princípio da independência funcional dos magistrados, pilar de uma Justiça verdadeiramente isenta e imparcial. Tanto que, contra a decisão do juiz que autoriza escuta telefônica não cabe recurso ao CNJ, mas, sim, aos Tribunais de Justiça ou aos Tribunais Superiores.
Se a moda pega - aliás, já esta pegando! -, daqui a pouco o CNJ vai querer dizer se o juiz deve condenar ou absolver A ou B, se deve julgar procedente ou improcedente esta ou aquela demanda, absorvendo, assim, todas as funções do Poder Judiciário.
Ou eu estou redondamente enganado, ou não era bem isso que a Constituição queria dizer quando criou os tais "órgão de controle exrerno" pela EC nº 45/2004.
Precisamos voltar ao bom tempo em que "cada qual só fazia o que era de cada qual".
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LUIZ ISMAELINO VALENTE é advogado e procurador de justiça aposentado
quinta-feira, 17 de julho de 2008
A primazia da Constituição
Como leitor assíduo e admirador incondicional do blog, confesso que já estava ficando preocupado com o tom excessivamente "protogênico", digamos assim, dos posts sobre a Operação Satiagraha.
Mas ganhei novo alento ao ler a postagem do irretocável artigo do professor e mocorongo Helenilson Pontes - O valor da Constituição. Em vez de afastarem os delegados do caso, deveriam obrigá-los a lerem mil vezes o referido artigo. Assim, aprenderiam algo de muito útil.
Todos queremos, é lógico, que os criminosos - banqueiros ou não - sejam condenados e paguem pelos seus crimes. Mas todos temos que compreender que o acusado - seja ele quem for, ricaço ou pé-rapado - tem direitos que a Constituição garante, como, por exemplo:
* "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (e processo significa: acusação, defesa, instrução probatória, sentença final e recursos. Inquérito policial não é processo, é mera peça informativa - ou informatio delicti, no juridiquês - que pode ou não embasar a denúncia que deflagra o processo. À parte de ser peça perfeitamente dispensável, o inquérito policial não tem o condão de absolver nem condenar quem quer que seja, embora seja útil a este desiderato, quando elaborado com exatidão);
* “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (o que desautoriza a negativa de dar vistas dos autos ao advogado do acusado, mesmo na fase inquisitorial, pois esta não é e nem pode ser mais importante do que a fase processual, e se a Constituição garante a ampla defesa no mais, que é o processo, garante obviamente no menos, que é o inquérito);
* "são inadmissíveis, no processo, as provas colhidas por meios ilícitos" (pelo que irão inexoravelmente para a lata do lixo todas as escutas e gravações não autorizadas ou que extrapolem os limites da autorização quando previamente dada, ainda que façam ou tenham feito as delícias dos veículos de comunicação de massa);
* "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado" (o que torna legítimos os esforços da família e do advogado para saber do que se está sendo acusado e quais as provas da acusação que a autoridade policial tanto teima esconder);
* "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral" (o que desautoriza não só a tortura física, mas também a tortura moral como a imposição de algemas a quem não oferece resistência alguma à prisão, como é o caso de alguém sonolento arrancado da cama pelos agentes, só de pijama, às seis horas da manhã; bem como a exposição forçada do preso perante câmeras de TV e fotógrafos de jornais e revistas - e esta exposição, adianto logo, não tem nada a ver com a liberdade de Imprensa, mas, sim, com a "execração pública" de um acusado que ainda não foi sequer formalmente denunciado, quanto mais julgado e condenado criminalmente).
Todos queremos, é claro, a punição dos criminosos - ricos ou pobres -, mas não temos o direito sequer de tergiversar sobre a regra de que - "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (e antes que me acusem de incoerência, ressalto logo que a presunção de inocência tem tratamento diferenciado no Direito Penal e no Direito Eleitoral, pois naquele prepondera a garantia individual, e, neste, a garantia da sociedade).
Todos devemos entender que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". No ordenamento jurídico nacional, a prisão temporária e a prisão preventiva não são penas nem castigos. São medidas cautelares, de cunho processual e não condenatório, decretáveis somente se e quando necessárias - e tal necessidade deve ser fundamentada e calçada em motivos concretos, não em meras ilações ou suposições.
A "espetacularização" vem transformando a prisão temporária, tanto quanto a prisão preventiva, em nova modalidade de prisão, não prevista em nosso ordenamento jurídico: a prisão para execração pública do acusado, com inegável requinte de crueldade, pois submete imediatamente o preso a um prematuro e desnecessário vexame público, como se essa fosse a infeliz e sardônica contribuição brasileira ao livro Dos Delitos e das Penas, com o qual o marquês italiano Cesare Beccaria Bonesana revolucionou o Direito Penal no Século XVIII, ao desnudar o iníquo sistema de penas desumanas e degradantes que repugnam à consciência jurídica em qualquer parte do mundo, exceto, é claro, nas sociedades fundamentalistas.
A turba "exaltada pela vingança" precisa entender que a sociedade, violentada pelo crime, "não se vinga, mas defende-se; não persegue o acusado, busca-o", e que essa mesma sociedade, ao presumir a inocência do acusado, "não quer mais eloqüência que não seja a da verdade, nem mais força que não seja a da justiça" - como ensinava o velho Timon, Vizconde de Comerlion, em seu "Libro de Los Oradores".
Em que pesem os argumentos alinhavados por procuradores que entendem ter a decisão do presidente do STF suprimido instâncias ordinárias - pelo que se aventa até levar Mr. Mendes às barras da ONU, que, por sinal, como Milton Campos em Minas, devia ter enviado a Belém o "trem pagador" para solucionar os problemas da Santa Casa de Misericórdia, em vez de mandar uma comissária fazer pose para fotógrafos e câmeras de TV, sem qualquer resultado prático que previna a morte de recém-nascidos -, não passa despercebido que o habeas-corpus em favor do banqueiro já estava lá no Supremo, porque denegado nas instâncias inferiores, e que a "pulverização" ou a "renovação" dos decretos de prisão, bem como de suas "justificativas", cheiram a "chicana judicial", prática que não tem guarida na lei, precisamente porque se presta, de forma oblíqua e dissimulada como os olhos da Capitu, para desafiar a decisão superior que porventura venha a ser dada, e isto é tão condenável quanto qualquer "manobra" de um advogado chicanista.
Queremos, é claro, que todos os criminosos - de grosso ou de nenhum calibre social - sejam condenados. Mas, quando um Protógenes se transforma em "protagonista" do inquérito, fazendo do pronome pessoal "eu" o objeto direto da peça informativa (leia-se, a propósito, o calhamaço do relatório assinado pelos delegados, repleto de erros de português e raciocínios tortuosos, erráticos, obscuros, quando não nitidamente mirabolantes); quando o acusador abusa da adjetivação que não prova o crime, não o torna mais grave e não se coaduna com a cientificidade do Direito, mas revela um certo transtorno mental que reclama tratamento psiquiátrico - o mais provável é que o inquérito venha a ser pulverizado quando, no tempo devido, for submetido ao crivo do contraditório, frustrando, assim, as expectativas da sociedade. E, se isso ocorrer, a culpa, com certeza, não será de Mr. Mendes.
Post scriptum - Há tempos que me pergunto: pode a Polícia Federal "batizar" suas "operações" com nomes exóticos, estapafúrdios, estrambóticos, irônicos e solfejados com requintes de perversidade? Creio que não. A meu ver, isso atenta contra pelo menos dois dos mais elementares princípios constitucionais que regem a Administração Pública - o da impessoalidade e o da legalidade -, cuja inobservância caracteriza inequívoco ato de improbidade administrativa, nos exatos termos do artigo 11 da Lei nº 8.429/1992. Mas isso é tema para um outro e mais aprofundado estudo.
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Luiz Ismaelino Valente é procurador de justiça aposentado e advogado
sexta-feira, 13 de junho de 2008
Se ainda houver juízes neste País
“O indeferimento do registro de candidatos notoriamente ímprobos é uma premente necessidade, é um ato irrecusável de legítima defesa da ordem democrática, posto que tais candidaturas são incompatíveis com a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, protegidas pela Constituição.”
A recente decisão do TSE, permitindo o registro da candidatura de notórios corruptos que ainda não tiveram contra si uma sentença condenatória transitada em julgado, embora sejam réus em diversos processos e até condenados em primeira ou segunda instâncias, veio de braços dados com as traças do mais carcomido conservadorismo, e, sem querer fazer trocadilho, constitui um erro de altíssimo grau, pelo qual o País continuará a pagar um preço incalculável.
No sistema brasileiro da hierarquia das leis, é inadmissível que a lei complementar prevaleça sobre a Constituição.
Se a Carta Magna diz que a lei complementar "estabelecerá outros casos de inelegibilidades, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato", como se lê, com todas as letras, no § 9º do seu artigo 14, obviamente não pode a lei complementar deixar de garantir essa proteção.
Se a lei complementar assim não o faz, porque é omissa ou insuficiente para proteger o que a Constituição expressamente manda proteger, caberá, sem dúvida, ao juiz, ao aplicá-la, atender "aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum", como recomenda o artigo 5º da velha Lei de Introdução ao Código Civil, de 1942.
O fim social a que a se destina lei complementar que dispõe sobre os casos de inelegibilidade é proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do pretendente. Por conseguinte, sob o manto sagrado da lei não se podem albergar vidas pregressas tão abertamente incompatíveis com o que a mesma lei visa proteger.
Longe, pois, de configurar usurpação da competência legislativa, a decisão do juiz eleitoral, nesses casos, deve necessariamente considerar que o legislador pátrio, ao exigir, na lei complementar, o trânsito em julgado da sentença condenatória como conditio sine qua para configurar a inelegibilidade dos corruptos processados e, muitas vezes, já condenados por Tribunais de Contas ou instâncias judiciais, produziu, ipso facto, uma evidente fraude, uma inequívoca burla aos objetivos da própria lei, pois é mais do que sabido que o Supremo Tribunal - última instância do nosso sistema judicial - jamais condenou um só político corrupto em toda a sua longa história (não por falta de matéria-prima).
Em que pese a clareza desse raciocínio, quatro dos sete juízes do TSE, brandindo um positivismo legalista e meramente burocrático, reflexo do espírito de amanuense de seus expositores - que, diga-se de passagem, em última instância, como magistrados, deviam proteger os direitos da sociedade e não os da bandidagem -, e a pretexto de "evitar o caos", travestiram-se como novos Cavaleiros do Apocalipse, legitimando a continuidade da desordem hoje reinante.
E isso é tudo o que a lei eleitoral não quer e nem jamais pode querer!
Todavia, a malsinada decisão foi tomada por apertada maioria de votos, felizmente volúvel por força da renovação do mandato dos juízes eleitorais a cada dois anos.
Resta, pois, a esperança de que os magistrados eleitorais de primeiro grau, que já vinham ensaiando decisões mais arrojadas em sentido contrário, persistam na mesma trilha por eles aberta, construindo a jurisprudência de baixo para cima, invertendo o costume das cúpulas dominarem as bases, até porque, neste caso, são as bases que têm muito a ensinar às cúpulas.
O indeferimento do registro de candidatos notoriamente ímprobos é uma premente necessidade, é um ato irrecusável de legítima defesa da ordem democrática, posto que tais candidaturas são incompatíveis com a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, protegidas pela Constituição.
Que os juízes eleitorais de primeiro grau, portanto, não se deixem intimidar pela ameaça de, num grau recursal mais alto, terem as suas decisões progressistas derrubadas por acórdãos visivelmente corroídos pelas traças vorazes do atraso e da promiscuidade.
Permitam-me os magistrados eleitorais de primeira instância uma sugestão: espantem o medo de inovar, colocando em frente a cada pedido de registro de candidato a célebre fala de Ruy Barbosa, mais atual do que nunca:
- "Queria dizer, boa é a lei, quando executada com retidão. Isto é: boa será, em havendo no executor a virtude que na legislação não havia."
Se isso não for o bastante para escudar a coragem de ousar em benefício do bem comum, continuem, por favor, a leitura de Ruy, na mesma peça:
- “Só a moderação, a inteireza, a eqüidade, no aplicar das más leis, as poderiam, em certa medida, escoimar da impureza, dureza e maldade que encerrarem. Ou, mais lisa e claramente (...) mais vale a lei má, quando inexecutada, ou mal executada (para o bem), do que a lei boa, sofismada e não executada.”
Com tais palavras em mente, o povo espera que cada juiz eleitoral de primeiro grau saiba exercer o seu indeclinável dever de expurgar da lei de inelegibilidades a fraude que ela própria encerra, pois é esse, precisamente, na lição irrefutável do grande Ruy, o grande e verdadeiro papel da Justiça:
- "Que imensurável, que, por assim dizer, estupendo, logo, não será, em tais condições, o papel da Justiça! Porque, se dignos são os juízes, como parte suprema, que constituem, no executar das leis - em sendo justas, lhes manterão eles a sua justiça, e, injustiça, lhes poderão moderar, se não, até no seu tanto, corrigir a injustiça."
Ora, não é justo que uma lei, um juiz ou um Tribunal permitam que bandoleiros tomem contra dos cofres públicos.
Parodiando e atualizando Lacerda, em sua campanha contra a Getúlio na década de 1950: o candidato que vive em flagrante e constante "namoro com a delitividade" não pode ser registrado; registrado, não pode ser eleito; eleito, não pode ser diplomado; diplomado, não pode tomar posse, e, empossado, não pode exercer o mandato.
Em algum momento dessa extensa via-crúcis haverá de ter alguém que abata, em pleno vôo, essas aves de rapina, pondo-se, finalmente, o erário público, a salvo dos seus contumazes assaltantes.
Isto é, se ainda houver juízes neste País!
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(*) Procurador de Justiça aposentado e advogado. Ex-docente de Direito Eleitoral da ESM/PA e da ESMP/PA.
terça-feira, 13 de maio de 2008
Carta aberta à Justiça Eleitoral
LUIZ ISMAELINO VALENTE
Há dois anos, escrevi-lhe uma carta aberta, confessando-lhe, com todo o respeito, a grande paixão de trinta e seis anos (hoje, de trinta e oito anos) que nutro pela senhora. Nessas quase quatro décadas, obcecado pela sua figura, estudei com afinco a sua história, a sua trajetória, os seus acertos e desacertos.
E foi assim que eu aprendi que a senhora foi chamada pela Revolução de 1930 para por ordem no processo eleitoral que o anterior Sistema de Verificação dos Poderes (vérification du pouvoirs), comandado pelo Poder Legislativo da época, tão corrupto quanto o de hoje, transformara numa zona de meretrício.
Com a sua reconhecida imparcialidade e sabedoria, a senhora foi acabando, ao longo do tempo, com o mapismo, com a eleição a bico de pena, enfim, com o carcomido sistema da República Velha - aquele do coronelismo, enxada e voto, tão bem descrito pelo ministro Victor Nunes Leal.
Foi uma luta e tanta, muito árdua. Mas a senhora saiu vencedora: a urna eletrônica, que a senhora inventou, acabou de vez com a agonia dos candidatos que dormiam eleitos e acordavam derrotados, ou vice-versa; e a senhora baniu, definitivamente, da crônica dos costumes eleitorais, o emprenhamento das urnas que ocorriam bem debaixo das baionetas encarregadas de vigiá-las.
Por causa disso, ouso dizer que a senhora não envelheceu, pelo contrário, rejuvenesceu e ficou até mais bonita aos setenta e tantos anos.
Mas isso, minha senhora, não me impede de notar no seu perfil uma ruga aqui, uma celulite ali, um pé-de-galinha acolá. Nada que um bom bisturi hermenêutico ou uma lipoaspiração jurisprudencial não possam dar jeito de imediato, seja para remover o tecido necrosado, seja para tirar o excesso de gordura. Basta querer.
Mas, olhe, bela senhora, o Brasil já não suporta mais esperar. Nossa última esperança é que a senhora mesma decida reformar os (maus) costumes políticos que ainda vigoram entre nós.
Não espere pela reforma dos nossos amados legisladores. O Congresso Nacional não tem legitimidade para legislar sobre eleições, porque, é claro, a raposa não é parte legítima para regulamentar o galinheiro.
As leis que eles fazem, a senhora bem sabe, trazem um discurso bonitinho no caput e cem mil rotas de fuga nos parágrafos, incisos e alíneas. E é por aí que as raposas escapam da sua vigilância.
Só a senhora pode mudar esse estado de coisas. Faça como fez com a fidelidade partidária ou a verticalização das coligações: crie jurisprudência.
Não importa que se espalhe na blogosfera que a senhora está é querendo legislar. A judicialização da política é conseqüência da generalização da corrupção. E a jurisprudência, minha senhora, também é fonte do Direito enquanto ciência.
Esperar que sanguessugas e mensaleiros eleitos e reeleitos aprimorem a lei atual, é pura perda de tempo. Eles jamais farão isso, porque é contra sua natureza de escorpião.
Na carta que lhe mandei há dois anos, perguntei-lhe: o que a senhora espera para declarar caduco e sem validade o artigo 81 da Lei das Eleições, que data de 1997?
Esse dispositivo é que autoriza as doações financeiras de bancos e grandes empresas, muitas delas de bicheiros e traficantes, para as campanhas eleitorais.
Trata-se de uma disposição transitória que só valeria para as eleições de 1998. Não pode, portanto, ficar deitada eternamente em berço esplêndido como se fosse uma disposição legal permanente.
Como a senhora bem sabe, essas doações financeiras são o calcanhar de Aquiles do sistema eleitoral brasileiro. É aí que prolifera o vírus da corrupção eleitoral e da bandalheira administrativa. Se esse dispositivo já está caduco, o que falta para ser declarada a caducidade?
Por favor, minha boa senhora, não deixe a televisão desvirtuar o processo eleitoral. Exija que priorizem a exposição de idéias e não restrinjam as campanhas ao marketing ilusionista ou à chatice da exposição semanal (ou até diária) dos índices das pesquisas de opinião.
Por que a senhora tolera essas convenções partidárias de araque, efetuadas, à revelia das bases do Partido, por meia dúzia de caciques que se fazem donos de siglas de aluguel?
A lei diz que os prazos eleitorais são contínuos e peremptórios. E que o prazo fatal para a escolha de candidatos e coligações é o dia 30 de junho. Por que a senhora admite as manobras desses mequetrefes partidários que espicham o prazo até o dia 5 de julho e aproveitam a sobra de tempo para aprimorar as negociatas e os planos de assalto aos cofres públicos?
Há dois anos pedi-lhe, e torno a pedir agora, que a senhora bote um freio na reeleição (a pior praga já instituída na história deste País), exigindo, por exemplo, a desincompatibilização, para garantir a igualdade de oportunidade entre os candidatos que se assenta no princípio constitucional da isonomia.
Se a isonomia é a maior das nossas garantias constitucionais, por que será que a senhora não dá ao instituto da reeleição uma "interpretação conforme a Constituição", fazendo prevalecer o princípio isonômico, pois o continuísmo, por melhor que seja o governo, compromete a boa e salutar rotatividade do poder, inerente ao regime democrático e ao sistema republicano.
Mas, olhe, minha senhora, a tese do terceiro mandato já está nas bocas (e vai que o homem resolve querer contar seus mandatos pelos dedos da mão direita?...). Portanto,não marque bobeira, apresse-se.
Pedi-lhe, há dois anos, e peço de novo agora: ponha cobro no despudorado uso das máquinas administrativas, inclusive nessa sem-vergonhice com que utilizam o dinheiro público, os aviões e o aparato de segurança oficiais para realizar eventos já rotulados de pactóides, mas que a própria "mãe do PAC" chamou maternalmente pelo nome verdadeiro de comícios.
Se a senhora quiser, pode impedir que os palácios oficiais se transformem em comitês de campanhas, já que as famosas "exceções da lei" eleitoral são inconstitucionais, porquanto violadoras do princípio da igualdade de oportunidades entre os candidatos.
Enfim, minha senhora, há tanta coisa dependendo exclusivamente do seu querer e do seu inegável poder.
Há dois anos, escrevi-lhe o seguinte: "Não se apequene. Não fique só preocupada em medir o tamanho das placas de propaganda ou em prender cabo eleitoral que faz boca de urna. Pense grande. Vá direto na jugular do monstro que está matando a democracia."
Um quelóide que muito enfeia o seu visual, minha senhora, e que precisa ser removido de imediato, é o voto obrigatório. No atual estágio da evolução política, não subsiste nenhuma razão histórica, sociológica ou política para obrigar o cidadão a votar.
O voto é a maior expressão da liberdade humana. O voto compulsório é uma violência contra a liberdade de cada um. Mais do que um dever cívico, o voto é um direito cívico: seu exercício deve ocorrer absolutamente a salvo de peias, não pode ser imposto por ninguém nem em nome do que quer que seja.
Democracia e cidadania jamais florescem sob a força do baraço e do cutelo. Voto obrigatório soa a voto de cabresto, remete a curral eleitoral. Dê ao exercício do voto nova interpretação "conforme a Constituição", porque a Constituição consagra a plena liberdade do ser humano e do cidadão.
Repare nos "debates" entre os candidatos: cada qual quer provar que o outro é mais corrupto e desonesto ou que está mais cercado de corruptos e desonestos. Ninguém proclama a própria honestidade, limita-se a alardear a desonestidade do adversário. Faz sentido, então, ter que escolher, obrigatoriamente, apenas entre corruptos e desonestos?
Com o voto compulsório, minha escolha recairá, inelutavelmente, num autêntico ou potencial patife. Obrigado a escolher tão mal e porcamente, estarei apenas contribuindo para eternizar um sistema eleitoral altamente degenerado e nocivo à sociedade, ao País e à Nação.
Para a maioria ibopeana ou datafolheana, isso talvez não tenha importância. Questões de ética já não comovem as massas. O povo, como o Rei da fábula de Andersen, está nu. Mas eu me pergunto: por que diabos terei de votar no mais do mesmo que sabidamente não presta?
Não deixe que nos enganem com a popularidade comprada com o Bolsa Famélica e sua flora acompanhante: o Bolsa Trabalho, o Bolsa MST, o Bolsa ONG, o Bolsa Ditadura, e um punhado de outras bolsas que fazem os valorosos formadores da opinião de outrora calarem a boca.
Essas bolsas tornaram-se, em poucos anos, o maior programa de compra de votos dos miseráveis da história do País. Dele se pode muito bem dizer o que Karl Marx disse da religião: "É o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas".
Em outras palavras: o programa de bolsas "é o ópio do povo", na incomparável expressão de Marx, que a esquerda, ao galgar o poder, tratou de esquecer (ou será que, justamente, não esqueceu e resolveu por em prática, para usufruir, às custas da burra da Nação, as mordomias tão criticadas no antecessor?)
De fato, amada senhora, empanturrado com a migalha que lhe pinga dos cofres públicos todos os meses, garantindo-lhe o jaraqui sem precisar ter que pescar, o povo rendeu-se à fatalidade do seu destino à Nelson Rodrigues: sentou no meio fio e curte, como que maconhado, a síndrome de Estocolmo (essa estranha dependência afetiva e cumplicidade que se estabelecem entre os corrompidos e seus corruptores, que é o traço mais marcante dos dias atuais, mesmo com o País fazendo piruetas no investiment grade).
Na outra ponta, minha senhora, o programa de remuneração da especulação financeira permite à classe empresarial auferir lucros nunca dantes auferidos, mercê dos altos juros pagos sobre os títulos do governo com o dinheiro dos impostos que nós pagamos: "É o ópio das Zelites", eu ousaria dizer, sem o mesmo brilho do velho Marx.
Dessa forma, com a base e o topo da pirâmide social assim entorpecidos de tanto ópio, o povo e as elites entregam-se à frouxidão da ética, à leniência moral e à solidariedade cúmplice para com os mensaleiros, os aloprados, os vampiros, os sanguessugas, os fabricantes de dossiês e todos aqueles que, munidos de cartões corporativos, fazem da Administração Pública não só a casa da mãe Joana, mas, literalmente, a casa da sogra.
Ah, não, minha senhora, não me obrigue a escolher tão mal. Não me obrigue a optar entre o péssimo e o ruim, entre o roto e o esfarrapado. Não é justo! Para a legítima defesa da minha consciência ética, só disponho dos instrumentos da abstenção e do voto nulo ou em branco. Não me condene por usá-los.
Antes de me condenar por isso, a senhora devia me oferecer um meio mais seguro para uma escolha consciente e ética, até porque a senhora tem o dever de garantir que o meu voto não seja um voto robotizado, um voto sem alma, totalmente desprovido de poder reformador.
Como lhe sugeri há dois anos atrás, amada senhora, por que não começar a reforma política pelo registro unicamente de candidatos acima de qualquer suspeita?
A senhora tem a caneta. Se a senhora indeferir, numa só canetada, o registro de candidatos metidos em patifarias, o que é que eles poderão fazer, a não ser plantar batatas?
Já está na hora, douta senhora, de barrar, sem muita lengalenga, a candidatura dos que exibem notórios prontuários, em vez de bons antecedentes. Ou dos que abusam do poder político ou do poder econômico.
Ouça, a respeito, a voz do seu novo presidente, o Dr. Carlos Ayres de Britto.
Ao contrário do Pelé, que, calado, "é um poeta", segundo a insuspeita opinião do Romário, eu lhe afianço que, falando, o Dr. Carlos Ayres é que é um poeta. Veja só esta pérola do seu pensamento: "O Direito não pode ignorar a realidade. Quando o direito ignora a realidade, a realidade dá o troco".
E o troco, nesses casos, todos sabemos, é um só: o desvio do dinheiro público para os bolsos (e bolsas) privados.
Escute bem o que disse também Carlos Ayres de Britto: "A Constituição fala de candidato no sentido de cândido, puro, pessoa depurada do ponto de vista ético".
Por conseguinte, se essa gente é suja e responde a processos por falcatruas e toda sorte de improbidade não pode e não merece ser candidato, pois falta-lhe um requisito primordial: a vida pregressa ilibada, fundamental, sine qua non, tão indispensável quanto inafastável para o exercício de qualquer função pública.
Portanto, minha douta senhora, o que a senhora espera para rodar a baiana e declarar guerra aos que "namoram com a delitividade" (outra expressão de Carlos Ayres, que deveria ser entoada como um poema em todos os Palácios da Justiça).
O parte do Brasil que não corrompe e nem se deixa corromper está torcendo para que a senhora aplique nos corruptos (e também nos corrompidos que se deixam docemente corromper) uma bela surra com a aroeira de mato virgem de suas implacáveis decisões jurisprudenciais.
Estou louco para cumprir o tal do meu dever cívico. Da mesma forma que para exercer o meu direito se o voto for facultativo. Mas, como todo cidadão pouco chegado a qualquer tipo de ópio e ansioso pela restauração da moralidade, aguardo, para este pleito, já, já, as boas novas da sua parte.
Neste País, conseguiram transformar a esperança em dejetos orgânicos de muito mau cheiro. Mas, se a senhora quiser, a esperança pode ser desinfetada e restabelecida para o gáudio da sociedade. Para a senhora, querida dama, querer é Poder.
Afetuosamente e até 2010,
Luiz Ismaelino Valente é procurador de Justiça aposentado e advogado, ex-docente de Direito Eleitoral na ESM-PA e na FESMP-PA
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