sexta-feira, 6 de junho de 2008

A reverência de um flamenguista aos tricolores


Não há coisa mais comovedora – sinceramente -, para quem gosta do futebol, quando torcedores, sobretudo os apaixonados, os fanáticos, os devotados, reconhecem e aplaudem os feitos do adversário.
Futebol sem irreverência, sem o escracho, sem o deboche saudável, sem a secação, futebol sem esses temperos, enfim, não é futebol. Infelizmente, nos últimos anos, o que se tem visto é tudo isso ser desvirtuado e deturpado para resumir-se à selvageria, a condutas típicas de bandidos que se (tra)vestem de torcidas organizadas e freqüentam os estádios para praticar crimes. Mas isto é caso para a polícia e para a Justiça, que já tornou vários desses bandos proscritos.
Falemos, portanto, do que é bom no futebol.
Pois é. Ontem, Francisco Cezar, o Mestre Chico Cezar, passou aqui pelo Espaço Aberto e deve ter sentido náuseas, ao deparar-se com a “cobertura” maciça e volumosa que esses tricolores – desocupados - aqui da redação fizeram para marcar o feito heróico do Flu na Libertadores.
Cezar deve ter-se segurado nas entranhas porque é flamenguista. E não é flamenguista desde criancinha, não. É flamenguista desde a concepção, desde a fase, digamos, embrionária.
Mas Cezar é torcedor por essência. Por isso é que deixou aqui uma bela mensagem que não entrou na caixinha, mas que veio parar no e-mail do blog, por insistência do poster.
Na mensagem, não apenas parabenizou os tricolores da redação pela vitória sobre o Boca Juniors, mas pediu permissão para dar maior amplitude às palavras de Nelson Rodrigues, o personagem que ontem bombou por aqui.
“Flamengamente apaixonado por tudo o que diga respeito ao meu ‘Mengão’”, como ele mesmo se define, Cezar tem em suas estantes vários livros falando do e sobre o Flamengo.
E um de seus livros prediletos chama-se Fla x Flu - E as Multidões Despertaram!, da lavra dos irmãos Nelson Rodrigues e Mário Filho – o mesmo Mário Filho que emprestou o nome ao Maracanã - e organização de Oscar Maron Filho e Renata Ferreira, Edição Europa. Foi um presente que a Xerox do Brasil, em 1987, deu à torcida brasileira, especialmente tricolores e rubro-negros.
Pois a crônica que abre o livro é de Nelson Rodrigues e diz, dentre outras coisas:

Sou Tricolor, sempre fui Tricolor. Eu diria que já era Fluminense em vidas passadas, antes, muito antes da presente encarnação.
(....)
Imagino que o leitor esteja fazendo a impaciente pergunta - "E o Flamengo?" Hoje, o Rubro-Negro, por onde vai, arrasta multidões fanatizadas. Há quem morra com o seu nome gravado no coração, a ponta de canivete. Mas eu não falei no Flamengo e explico: - O Flamengo nem sempre foi Flamengo. Antes do futebol, o Rubro-Negro foi remo, ou, melhor dizendo, foi "domingo de regatas".
Até que um dia, houve uma dissidência no Fluminense (...). E não sei quantos Tricolores saíram para fundar o Flamengo. Hoje, nos grandes jogos, o Estádio Mário Filho é inundado pela multidão rubro negra. O Flamengo tornou-se uma força da natureza e, repito, o Flamengo venta, chove , troveja, relampeja. Eis o que eu pergunto: - Os gatos pingados que se reuniram numa salinha imaginavam as potencialidades que estavam liberando?
Há um parentesco óbvio entre o Fluminense e o Flamengo. E como este se gerou no ressentimento, eu diria que os dois são os irmãos Karamazov do futebol brasileiro."


Cezar conclui no e-mail que enviou ao blog:

Ah! que cronista maravilhoso!
Dentre tantos textos de Nelson Rodrigues sobre o Flamengo, um, particularmente, me comove. É quando ele fala (escreve) do "manto sagrado", assim:
“Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo a camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte : - quando o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juízes, bandeirinhas tremem, então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.”
Não é lindo?
Fala sério...
Então , meu querido PB , quando leio, ouço, vejo, qualquer referência a Nelson Rodrigues, passa-me um filme na memória e me vejo lendo
À sombra das chuteiras imortais [aí em cima], que era o nome de sua coluna em ‘O Globo’ dos anos 60, e eu, ainda garoto, mas já com o gosto pela leitura (e Flamenguista, lembra? desde pixixito...) me deliciava com palavras, às vezes até sem entendê-las...
Perdoa-me, caro Tricolor, hoje todas as alvíssaras devem ser para o Fluminense e eu, aqui, me intrometendo...
Mas, pra não dizer que não falei de flores, vê lá como Nelson Rodrigues explica o nascimento do Fla x Flu. Tá no livro, assim:
“Quando me perguntam: quando começou o Fla x Flu? Eu diria: - O Fla x Flu não tem começo. O Fla x Flu não tem fim. O Fla x Flu começou quarenta minutos antes do nada. E aí então as multidões despertaram. E Mário Filho, já então, antes do Paraíso, escrevia sobre o Fla x Flu e dizia que o Fla x Flu ia ser o assombro do futebol, o milagre do futebol.
“O Fla x Flu é um jogo para sempre, não é um jogo para um século, um século é muito pouco para a sede e a fome do Fla x Flu. Começado o Fla x Flu, ele percorreria o tempo dos tempos. Foi uma criação do meu irmão Mário Filho, gênio da crônica esportiva. Ele se lembrou de fazer Fla x Flu, tinha notado que o Fla x Flu possuía uma flama, uma trepidação que nenhum outro jogo possuía. Até hoje, em todo o mundo, não há um jogo que chegue aos pés do Fla x Flu. Que é cada vez mais empolgante. E cada jogo entre o Fluminense e o Flamengo parece ser o maior do século e será assim eternamente.”


Encerra o Cezar no e-mail:

A demora foi demasiada (?)
Não sem antes te imaginar, como o grande dramaturgo bosquejou ao definir rodrigueaneamente o torcedor, "transfigurado, atravessado de luz como um santo de vitral" após o apito final dos 3 a 1 .
Bendita vitória!
Com o carinho do
Francisco.


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Cezar, o blog lhe garante: os tricolores daqui, reunidos em assembléia-geral extraordinária, deliberaram por unanimidade que mais comovente do que sua mensagem só mesmo os feitos heróicos do Flu, como este contra o Boca.

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