sábado, 23 de janeiro de 2010

O estigma do justo

Sob o título acima, o advogado Domingos Emmi assina em O LIBERAL de ontem um artigo que expressa a grandeza moral e a sensibilidade rara de Zilda Arns, a médica que também mereceu uma comovente homenagem de Paraguassu Élleres.
Leiam abaixo.

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O estigma do justo

DOMINGOS EMMI

Há justos que são templos para a família e apóstolos para o povo. Zilda Arns. Esse nome assim de impacto não significa nada para muitos, porque não tem em si mesmo lugar para ele próprio. Mas se dissermos Zilda Arns, fundadora e coordenadora da Pastoral da Criança, organismo de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, mesmo aqueles que nunca a viram se lembrarão.
Uma lembrança murada até o céu rugindo como o mar. Uma mulher sofrendo na carne o drama de crianças que não tinham o seu sangue, e que juntos sofrendo o frio que não era dela e a fome que vinha deles. Sua lembrança durará enquanto houver tempo para a orfandade sobre o estigma da doença e do desamparo.
Sei lá, mas os felizes que se cuidem, porque o mundo é muito amargo para os bons. Ou vivem sofrendo ou morrem prematura e tragicamente, como se a vida quisesse dar a entender que a dor é néctar de Deus e a tristeza uma forma imediata de achar o céu. Não há explicação para um homem como Salvador Nahmias, médico cardiologista que só praticava a cura e levava a esperança de vida aos corações ameaçados pelo infarto, terminar súbito como numa punição. Como pode uma pessoa como Abraham Lincoln – que só tinha voz para a justiça e mãos para corrigir, perdoando e nunca ferindo – acabar trágico como numa vingança?
A certeza da brevidade da vida elucida que “o homem nascido de mulher vive breve tempo, cheio de inquietação. Nasce como a flor e murcha; foge como a sombra, e não permanece”, (Jo: 14, 1 e 2). Brevidade que nos leva a imaginar que a vida é como um efêmero sonho matinal.
Afinal, não existem justificativas para pessoas como Carlos Gardel e Francisco Alves – que dos artistas de sua época eram os que mais se repartiam aos orfanatos e se multiplicavam na caridade, somente evocando canções e jamais vociferando o ódio – terem chegado ao inesperado fim como numa condenação.
O que justificaria uma mulher como a médica pediatra Zilda Arns – que transformou sua vida em ensinamento a ser seguido e sacrificou o conforto do lar no evangelho de ajudar o próximo, socorrendo crianças que sofriam sem sequer expor sua agonia particular à gratidão delas – morrer sob escombros causado pelo terremoto que sacudiu o Haiti como numa expiação?
Para nós só existe uma lógica, a de que o sofrimento é carinho de Deus. Mudaremos essa convicção se nos mostrarem ao menos uma vez em que Cristo foi visto rindo.
Quando o esquife que trazia os restos mortais de Zilda Arns chegou ao Palácio das Araucárias, sede do governo do Paraná para ser velado, várias crianças acompanhadas de voluntários da Pastoral da Criança já estavam lá, distraídas como anjos vagando e acorreram para o velório como aves em revoada para o ninho.
Num país como o nosso, onde concederam títulos de cidadania até a ladrões e fabricantes de pinga, talvez nunca se tenham lembrado dessa figura que mostrava à consciência pública o traço de centenas de rostinhos discriminados pela fatalidade social, cuja vida teve o peso de uma cruz e a toada de uma reza. Dela se poderia dizer que combateu o bom combate, completou a carreira e guardou a fé (II Timóteo, 4:7), essa fé que consola, que se levanta no coração do homem, porque é Deus iluminando-nos a alma.

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