“Muitas árvores” é título de uma das crônicas de Eneida de Moraes que integram um de seus livros, “Aruanda”.
O blog publicou a crônica no dia 12 de janeiro de 2008.
E republica agora, porque “Muitas árvores” é para ser ler sempre.
Todo dia, se possível.
A foto, que mostra as mangueiras da Braz de Aguiar, é do blog.
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Eram de mármore branco as escadarias que subíamos e descíamos correndo, na casa-grande onde nascemos – o nosso mundo – cercado de jardins e, aos fundos, o imenso quintal. As escadas brancas nos levava para outro país, para a rua, aquela pacata rua chamada Benjamim Constant, em Belém do Pará, que para nós parecia apenas um trecho sem importância, diante de nosso mundo povoado de tanta gente, muita árvores.
Ao começo julgávamos que aquela rua fosse apenas o pequeno trecho da esquina da São Jerônimo à Dr. Morais. Com o decorrer dos dias fomos descobrindo novos fragmentos e outros, ainda outros, até que tomamos conta da realidade que nos pareceu comovedora: aquela rua que pensáramos nossa e pequenina era imensa, começava muito longe, muito, entre capina e acabava mais longe, no Reduto.
Uma rua enorme, larga, muito povoada. Ficamos tremendamente alegres com a descoberta. Então não éramos só nós e as nossas, nossos amigos e nossos jogos? Bem perto, um “cordão de pastorinhas” chamado “Filhas da Flora” ensaiava em maio para o junho festivo. (Meu irmão mais moço sonhava ser pastor um dia; mas isso foi muito mais tarde, e quando conseguiu o papel num pastoril especialmente criado para ele, fracassou inteiramente como ator. Tinha que dizer apenas dois versos; nunca o conseguiu.)
Uma rua tão cheia de gente com trehcos pobres, outros muito mais pobres, pedaços mal calçados, outros sem calçamento. Uma rua enorme, muito povoada, e dentro dela, branco, elegante, solene mesmo, aquele palacete onde nascemos.
Satisfeitos em saber que a rua era um grande bem coletivo, começamos a trazer para o nosso quintal todos os garotos da redondeza. Foi instalado um futebol, havia uma hora em que minha mãe, penalizada de tanto esforço dos meninos, mandava servir laranjada ou leite gelado para os mais fraquinhos.
O quintal era o nosso feudo. Ao fundo aquela senhora vegetal tão gorda, tão grande que só ela marcava uma enorme sombra no quintal imenso: a mangueira, a velha mangueira, única árvore que, pela imponência e dignidade do porte, merecia nosso respeito. As outras – abieiros, cajueiros, goiabeiras e a caramboleira – todas as outras eram nossas irmãs e companheiras de travessuras, compartilhavam de nossas ingênuas descobertas.
A caramboleira; sobre ela instalamos um posto de observação muito eficaz. Com ela controlávamos a rua, atacávamos os inimigos, fiscalizávamos – sim, principalmente fiscalizávamos – uma vizinha, a Sinhazinha, preparando seus doces para vender. Quando os tabuleiros de sequilhos saíam do forno, Sinhazinha sabia que estávamos à espera. Gritava:
- Venham logo, meninos doidos.
- Onde estão esses meninos?
- Com certeza na caramboleira; ainda não é hora da Sinhazinha tirar os doces do forno.
Não posso precisar hoje quem promovia esse diálogo, mas posso asseverar que a voz mais doce e a mais cheia de cuidados era de minha mãe velando pelos nossos destinos, como um grande amor alado. Que outra coisa ela foi?
Da caramboleira atacávamos pessoas de nossa particular antipatia. Por exemplo: certo pintor da vizinhança, que não admitia gritos e que mandava à nossa chefe – minha mãe – bilhetes pedindo silêncio, muito silêncio, pois ele precisava pintar.
Era realmente um homem esquisito; sua casa ficava noutra rua, a grande distância da nossa, que ocupava quase todo o quarteirão. Jamais poderíamos compreender que nossos gritos fossem perturbar um pintor daqueles, cuja pintura desprezávamos. (Nesse ponto posso afirmar que, apesar da idade, estávamos senhores de uma crítica segura.)
As carambolas eram nossas armas, e só muito mais tarde aprendi que maduras são belas e muito agradáveis ao paladar; não conseguiam amadurecer em nossa infância, aquelas companheiras: eram indispensáveis às nossas guerras. A velha mangueira jamais nos acolheu em seus braços e hoje creio que ela fosse sombria, misteriosa, quase floresta escura. Era grande e velha, impunha respeito como se fosse nossa avó contando histórias.
O abieiro da esquerda não era de difícil ascensão; apenas dele não descortinávamos nenhuma paisagem digna de admiração. Na época das frutas, nós o freqüentávamos com fidelidade; depois, dele não precisávamos para viver. Nenhuma outra árvore trazia em si aquela simpatia, aquele afeto, aquele companheirismo da caramboleira, baixa e gorda, cheia de galhos, pejada de frutos dando para a rua, e na rua, do outro lado, Sinhazinha e seus sequilhos.
Dálias, jasmineiros, a açuceneira que foi mais tarde a minha companheira, não nos interessavam. Eram habitantes do jardim, pretensiosas, sem idade, viviam enclausuradas em seus canteiros e em suas belezas, mereciam cuidados especiais, pareciam mais para ser olhadas do que amadas. Eram arbustos...
Se tive minha infância tanta gente, se tantos personagens compõem minha vida passada, se uns foram grandes e outros menores, tive quem contasse estórias em francês e outras me ensinassem lendas, não posso esquecer, entre esses personagens, os vegetais, árvores e arbustos, frutos e flores que viveram minha primeira infância. (A açuceneira serviu depois para meus sonhos de mocinha. Perfumava todos.)
É por isso que até hoje sou capaz de dizer bom dia a uma mangueira e tenho especial ternura pelos canteiros de qualquer parte do mundo.
As árvores estão acompanhando atentas minha velhice, sabem de minha meninice que está ficando cada vez mais distante, minha mocidade navegando ao longe.
Que será feito hoje da caramboleira? Teria sido cortada? Estará ainda viva? É agora uma matrona, e se ficou tão gorda quanto era no passado, pode hoje ser chamada digníssima senhora.As árvores que encontro no meu caminho sabem, com certeza, que suas irmãs foram minhas irmãs de travessuras. Sabem e é por isso que aceitam, comovidas, o meu amor.
O blog publicou a crônica no dia 12 de janeiro de 2008.
E republica agora, porque “Muitas árvores” é para ser ler sempre.
Todo dia, se possível.
A foto, que mostra as mangueiras da Braz de Aguiar, é do blog.
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Eram de mármore branco as escadarias que subíamos e descíamos correndo, na casa-grande onde nascemos – o nosso mundo – cercado de jardins e, aos fundos, o imenso quintal. As escadas brancas nos levava para outro país, para a rua, aquela pacata rua chamada Benjamim Constant, em Belém do Pará, que para nós parecia apenas um trecho sem importância, diante de nosso mundo povoado de tanta gente, muita árvores.
Ao começo julgávamos que aquela rua fosse apenas o pequeno trecho da esquina da São Jerônimo à Dr. Morais. Com o decorrer dos dias fomos descobrindo novos fragmentos e outros, ainda outros, até que tomamos conta da realidade que nos pareceu comovedora: aquela rua que pensáramos nossa e pequenina era imensa, começava muito longe, muito, entre capina e acabava mais longe, no Reduto.
Uma rua enorme, larga, muito povoada. Ficamos tremendamente alegres com a descoberta. Então não éramos só nós e as nossas, nossos amigos e nossos jogos? Bem perto, um “cordão de pastorinhas” chamado “Filhas da Flora” ensaiava em maio para o junho festivo. (Meu irmão mais moço sonhava ser pastor um dia; mas isso foi muito mais tarde, e quando conseguiu o papel num pastoril especialmente criado para ele, fracassou inteiramente como ator. Tinha que dizer apenas dois versos; nunca o conseguiu.)
Uma rua tão cheia de gente com trehcos pobres, outros muito mais pobres, pedaços mal calçados, outros sem calçamento. Uma rua enorme, muito povoada, e dentro dela, branco, elegante, solene mesmo, aquele palacete onde nascemos.
Satisfeitos em saber que a rua era um grande bem coletivo, começamos a trazer para o nosso quintal todos os garotos da redondeza. Foi instalado um futebol, havia uma hora em que minha mãe, penalizada de tanto esforço dos meninos, mandava servir laranjada ou leite gelado para os mais fraquinhos.
O quintal era o nosso feudo. Ao fundo aquela senhora vegetal tão gorda, tão grande que só ela marcava uma enorme sombra no quintal imenso: a mangueira, a velha mangueira, única árvore que, pela imponência e dignidade do porte, merecia nosso respeito. As outras – abieiros, cajueiros, goiabeiras e a caramboleira – todas as outras eram nossas irmãs e companheiras de travessuras, compartilhavam de nossas ingênuas descobertas.
A caramboleira; sobre ela instalamos um posto de observação muito eficaz. Com ela controlávamos a rua, atacávamos os inimigos, fiscalizávamos – sim, principalmente fiscalizávamos – uma vizinha, a Sinhazinha, preparando seus doces para vender. Quando os tabuleiros de sequilhos saíam do forno, Sinhazinha sabia que estávamos à espera. Gritava:
- Venham logo, meninos doidos.
- Onde estão esses meninos?
- Com certeza na caramboleira; ainda não é hora da Sinhazinha tirar os doces do forno.
Não posso precisar hoje quem promovia esse diálogo, mas posso asseverar que a voz mais doce e a mais cheia de cuidados era de minha mãe velando pelos nossos destinos, como um grande amor alado. Que outra coisa ela foi?
Da caramboleira atacávamos pessoas de nossa particular antipatia. Por exemplo: certo pintor da vizinhança, que não admitia gritos e que mandava à nossa chefe – minha mãe – bilhetes pedindo silêncio, muito silêncio, pois ele precisava pintar.
Era realmente um homem esquisito; sua casa ficava noutra rua, a grande distância da nossa, que ocupava quase todo o quarteirão. Jamais poderíamos compreender que nossos gritos fossem perturbar um pintor daqueles, cuja pintura desprezávamos. (Nesse ponto posso afirmar que, apesar da idade, estávamos senhores de uma crítica segura.)
As carambolas eram nossas armas, e só muito mais tarde aprendi que maduras são belas e muito agradáveis ao paladar; não conseguiam amadurecer em nossa infância, aquelas companheiras: eram indispensáveis às nossas guerras. A velha mangueira jamais nos acolheu em seus braços e hoje creio que ela fosse sombria, misteriosa, quase floresta escura. Era grande e velha, impunha respeito como se fosse nossa avó contando histórias.
O abieiro da esquerda não era de difícil ascensão; apenas dele não descortinávamos nenhuma paisagem digna de admiração. Na época das frutas, nós o freqüentávamos com fidelidade; depois, dele não precisávamos para viver. Nenhuma outra árvore trazia em si aquela simpatia, aquele afeto, aquele companheirismo da caramboleira, baixa e gorda, cheia de galhos, pejada de frutos dando para a rua, e na rua, do outro lado, Sinhazinha e seus sequilhos.
Dálias, jasmineiros, a açuceneira que foi mais tarde a minha companheira, não nos interessavam. Eram habitantes do jardim, pretensiosas, sem idade, viviam enclausuradas em seus canteiros e em suas belezas, mereciam cuidados especiais, pareciam mais para ser olhadas do que amadas. Eram arbustos...
Se tive minha infância tanta gente, se tantos personagens compõem minha vida passada, se uns foram grandes e outros menores, tive quem contasse estórias em francês e outras me ensinassem lendas, não posso esquecer, entre esses personagens, os vegetais, árvores e arbustos, frutos e flores que viveram minha primeira infância. (A açuceneira serviu depois para meus sonhos de mocinha. Perfumava todos.)
É por isso que até hoje sou capaz de dizer bom dia a uma mangueira e tenho especial ternura pelos canteiros de qualquer parte do mundo.
As árvores estão acompanhando atentas minha velhice, sabem de minha meninice que está ficando cada vez mais distante, minha mocidade navegando ao longe.
Que será feito hoje da caramboleira? Teria sido cortada? Estará ainda viva? É agora uma matrona, e se ficou tão gorda quanto era no passado, pode hoje ser chamada digníssima senhora.As árvores que encontro no meu caminho sabem, com certeza, que suas irmãs foram minhas irmãs de travessuras. Sabem e é por isso que aceitam, comovidas, o meu amor.
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