"O tema de uma canção ou de um poema surge como um toque de mágica"
Como nasce uma canção ou um poema, enfim, uma obra de arte? O que vem primeiro: a letra ou a música? Depende. Letra e música podem surgir ao mesmo tempo, mas podem ser produzidas em lugares e tempos bem diversos.
O schottish Idílio do Infinito (1906), primeira composição de meu avô José Agostinho da Fonseca, nasceu de um olhar entre ele e a jovem Anna, numa serenata em Santarém, como retrata o poema de Emir Bemerguy, feito no centenário do compositor (1986). A valsa Rachelina (1922), dedicada pelo músico-poeta à jovem Rachel Peluso, pianista de sua orquestra Tapajós, recebeu tão adequada letra de João de Jesus Paes Loureiro, em 1996, como se música e poema tivessem sido criados ao mesmo tempo.
A valsa Beatrice (1931), primeira composição de Wilson Fonseca (Isoca), surgiu para ilustrar cena do filme O Beijo, com Greta Garbo, ao tempo do cinema mudo. A Canção de Minha Saudade (1949), letra de meu tio Wilmar Fonseca para a sobrinha Salete declamar no colégio, acabou musicada por Isoca. Depois, ele compôs Terra Querida (1961) com o intuito de completar a peça anterior na homenagem às belezas santarenas. A Lenda do Boto (1954) foi composta a pedido do gerente Jorge Camacho, na própria agência do Banco do Brasil, onde Wilson era funcionário. O bolero Um Poema de Amor (1953) inspirou-se no choro do filho Agostinho e na visão mágica do pôr do sol da Pérola do Tapajós.
O crepúsculo também foi inspiração para Isoca no noturno Santarém, Pôr-de-Sol (1951) concebido na Praça da Matriz, após ensaio do Coro da Catedral. Em 2003, elaborei um texto poético para esta obra-prima. Ainda em parceria com meu pai, em 1996 fiz a letra da Valsinha em Si Menor, composta em 1981. Neste 2008, criei a letra da valsa Maria das Dores (1955), que ele dedicou à minha irmã.
Sobre poemas de Fernando Pessoa, escritos entre 1921 e 1933, eu compus, em 2005/2006, as canções Poeta Fingidor, Tenho Tanto Sentimento e Ao longe, ao luar, na trilha do espírito lusitano. Em 2005 escrevi a cantata negra sobre o poema Batuque (1931) do paraense Bruno de Menezes.
Há tempos que eu desejava tornar-me parceiro do poeta Pe. Manuel Albuquerque (1906-1977). Agora que minha querida mãe Rosilda fez 90 anos de idade, musiquei o excelente poema Ser Mãe, tocada na festa de seu aniversário, em Florianópolis.
Na verdade, o tema de uma canção ou de um poema surge como um toque de mágica. Acredito que o compositor e o poeta são instrumentos de Deus, na criação da obra de arte.
Creio que o texto poético está oculto na música para a qual se deseja elaborar alguma letra. E vice-versa, a música está escondida no poema que se pretende musicar. Basta ao compositor ou ao poeta tornar explícito o contexto implícito na partitura ou na poesia. É um processo de descoberta. Um mistério que não sei explicar.
O ato de compor me parece tão espontâneo, intuitivo e vital que nem me dou conta do que acontece. De repente, a música ou a letra está criada. Surge de uma fagulha de inspiração. Depois, a paciência, os detalhes, o acabamento, que demandam técnica e dedicação, mas prazer.
Assim que lanço o olhar sobre o poema, com intenção de musicá-lo, o esboço da peça nasce espontaneamente. Registro a minuta da obra no pentagrama para não deixar escapar a inspiração. Se desejo elaborar o texto poético para a música, a letra vem naturalmente. Não raro, música e letra brotam ao mesmo tempo. Não sei como isso acontece. Apenas acontece. Dedo de Deus.
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Vicente Malheiros da Fonseca, é compositor e desembargador federal do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região.
(*) Este artigo foi publicado artigo publicado no jornal Uruá-Tapera - Gazeta do Oeste (Belém-Pa), Ano XVI, edição nº 157, de maio/2008, pg. 5.
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