domingo, 1 de junho de 2008

Como nasce uma canção?


"O tema de uma canção ou de um poema surge como um toque de mágica"

Como nasce uma canção ou um poema, enfim, uma obra de arte? O que vem primeiro: a letra ou a música? Depende. Letra e música podem surgir ao mesmo tempo, mas podem ser produzidas em lugares e tempos bem diversos.
O schottish Idílio do Infinito (1906), primeira composição de meu avô José Agostinho da Fonseca, nasceu de um olhar entre ele e a jovem Anna, numa serenata em Santarém, como retrata o poema de Emir Bemerguy, feito no centenário do compositor (1986). A valsa Rachelina (1922), dedicada pelo músico-poeta à jovem Rachel Peluso, pianista de sua orquestra Tapajós, recebeu tão adequada letra de João de Jesus Paes Loureiro, em 1996, como se música e poema tivessem sido criados ao mesmo tempo.
A valsa Beatrice (1931), primeira composição de Wilson Fonseca (Isoca), surgiu para ilustrar cena do filme O Beijo, com Greta Garbo, ao tempo do cinema mudo. A Canção de Minha Saudade (1949), letra de meu tio Wilmar Fonseca para a sobrinha Salete declamar no colégio, acabou musicada por Isoca. Depois, ele compôs Terra Querida (1961) com o intuito de completar a peça anterior na homenagem às belezas santarenas. A Lenda do Boto (1954) foi composta a pedido do gerente Jorge Camacho, na própria agência do Banco do Brasil, onde Wilson era funcionário. O bolero Um Poema de Amor (1953) inspirou-se no choro do filho Agostinho e na visão mágica do pôr do sol da Pérola do Tapajós.
O crepúsculo também foi inspiração para Isoca no noturno Santarém, Pôr-de-Sol (1951) concebido na Praça da Matriz, após ensaio do Coro da Catedral. Em 2003, elaborei um texto poético para esta obra-prima. Ainda em parceria com meu pai, em 1996 fiz a letra da Valsinha em Si Menor, composta em 1981. Neste 2008, criei a letra da valsa Maria das Dores (1955), que ele dedicou à minha irmã.
Sobre poemas de Fernando Pessoa, escritos entre 1921 e 1933, eu compus, em 2005/2006, as canções Poeta Fingidor, Tenho Tanto Sentimento e Ao longe, ao luar, na trilha do espírito lusitano. Em 2005 escrevi a cantata negra sobre o poema Batuque (1931) do paraense Bruno de Menezes.
Há tempos que eu desejava tornar-me parceiro do poeta Pe. Manuel Albuquerque (1906-1977). Agora que minha querida mãe Rosilda fez 90 anos de idade, musiquei o excelente poema Ser Mãe, tocada na festa de seu aniversário, em Florianópolis.
Na verdade, o tema de uma canção ou de um poema surge como um toque de mágica. Acredito que o compositor e o poeta são instrumentos de Deus, na criação da obra de arte.
Creio que o texto poético está oculto na música para a qual se deseja elaborar alguma letra. E vice-versa, a música está escondida no poema que se pretende musicar. Basta ao compositor ou ao poeta tornar explícito o contexto implícito na partitura ou na poesia. É um processo de descoberta. Um mistério que não sei explicar.
O ato de compor me parece tão espontâneo, intuitivo e vital que nem me dou conta do que acontece. De repente, a música ou a letra está criada. Surge de uma fagulha de inspiração. Depois, a paciência, os detalhes, o acabamento, que demandam técnica e dedicação, mas prazer.
Assim que lanço o olhar sobre o poema, com intenção de musicá-lo, o esboço da peça nasce espontaneamente. Registro a minuta da obra no pentagrama para não deixar escapar a inspiração. Se desejo elaborar o texto poético para a música, a letra vem naturalmente. Não raro, música e letra brotam ao mesmo tempo. Não sei como isso acontece. Apenas acontece. Dedo de Deus.

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Vicente Malheiros da Fonseca, é compositor e desembargador federal do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região.
(*) Este artigo foi publicado artigo publicado no jornal Uruá-Tapera - Gazeta do Oeste (Belém-Pa), Ano XVI, edição nº 157, de maio/2008, pg. 5.

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