O fio condutor da leitura e da trajetória da Lei de Anistia seguia um caminho tranqüilo. Os traumas e silêncios de um passado de mais de quatro décadas parecem ter vindo à tona. Em 1979, a Lei de Anistia foi vital para que o Brasil pudesse voltar à democracia. Inimigos da ditadura militar - inclusive os que pegaram em armas e mataram inocentes - e torturadores que habitavam os porões tiveram seus crimes prescritos.
Recentemente, um parecer da Advocacia Geral da União (AGU), órgão do Executivo federal, considerou sem fundamento jurídico o processo do Ministério Público Federal que acusa os coronéis reformados Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel de terem cometido crime de tortura quando comandavam o DOI-Codi, aparato da inteligência e repressão da ditadura. Para a AGU, os militares estão cobertos pela Lei de Anistia, que "traz um espírito de reconciliação e de pacificação".
O debate entre autoridades sobre a punição dos torturadores do regime militar não resolverá nada pela força do bate-boca. Essas flechadas e os elogios inócuos feitos por defensores ou detratores sobre a Lei de Anistia embutem nacionalismos, mas, igualmente, válidos argumentos sobre seus defeitos e méritos.
Invariavelmente, contudo, os descontentes atacam para que até consigam fazer prevalecer sua posição. Mas por esse caminho criam-se atritos e dificilmente se chega a uma solução satisfatória. Inclusive porque há razão dos dois lados. A Lei de anistia beneficiou a todos sem exceção, mas é o retrato de uma época, a tradução do acerto possível no último governo da era autoritária.
Além de voltar a contemplar uma fase obscura da vida brasileira, teria um viés que não faz o menor sentido 30 anos depois, insistir na punição dos torturadores equivaleria a manter os castigos impostos aos inimigos da ditadura e a pôr em risco o avanço do processo de redemocratização do Brasil. Não havia condições objetivas de fazer as coisas de outra forma. Era isso ou o retrocesso.
Hoje, quando os panos do teatro já nada representam, não faz o menor sentido retomar o tema como se não tivessem se passado três décadas e mudanças radicais não tivessem ocorrido no País.
Nesse tempo, alteraram-se a correlações de forças, o pessoal da caserna se submeteu ao poder civil, quase nada do que era aceitável naquela época, jurídica, social e politicamente falando, sobreviveu a esses trinta anos. O público ouvinte é outro. Formado por uma maioria de jovens, tem - na melhor das hipóteses - apenas uma ligeira idéia a respeito do assunto que tanto mobiliza o governo, contrapõe ministros e agora inclui os presidentes do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.
Alguma coisa dessa dimensão não adquire legitimidade na democracia se a sociedade não for partícipe. Os ministros Tarso Genro, da Justiça, Dilma Rousseff, da Casa Civil - que integrou um grupo armado e foi torturada - e Paulo Vannuchi, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, discordam. Para eles, tortura é crime comum, hediondo e, portanto, imprescritível.
Nosso Guia gostaria, segundo versão de sua assessoria, deve ver extinto o conflito em público. Mas aceita que a troca de opiniões prospere e não diz qual é a sua visão do problema. É remexer na Lei de Anistia? Se for, que diga o quanto antes. Se não for, que encerre de verdade a querela e deixe a justiça resolver. Mesmo ela enfrentará um campo espinhoso.
Para o ministro da Defesa, Nelson Jobim, "a Lei da Anistia produziu seus efeitos e é preciso olhar para frente". O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, alertou que a discussão tem "dupla face", porque o crime de terrorismo também é imprescritível: "Direitos humanos não podem ser ideologizados".
O risco é surgir uma crise institucional com base em uma lei que vai completar 30 anos. Nosso Guia prometeu convocar uma reunião entre a AGU e a Secretaria de Direitos Humanos. Analistas acham que Nosso Guia já deveria ter acabado com esse bate-boca improdutivo - chega de tanta morosidade - há três meses, quando Genro e Vannuchi começaram a defender a punição para os torturadores. Se tivessem agido antes, os pruridos crônicos e a crise não teriam grandes proporções.
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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com
Recentemente, um parecer da Advocacia Geral da União (AGU), órgão do Executivo federal, considerou sem fundamento jurídico o processo do Ministério Público Federal que acusa os coronéis reformados Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel de terem cometido crime de tortura quando comandavam o DOI-Codi, aparato da inteligência e repressão da ditadura. Para a AGU, os militares estão cobertos pela Lei de Anistia, que "traz um espírito de reconciliação e de pacificação".
O debate entre autoridades sobre a punição dos torturadores do regime militar não resolverá nada pela força do bate-boca. Essas flechadas e os elogios inócuos feitos por defensores ou detratores sobre a Lei de Anistia embutem nacionalismos, mas, igualmente, válidos argumentos sobre seus defeitos e méritos.
Invariavelmente, contudo, os descontentes atacam para que até consigam fazer prevalecer sua posição. Mas por esse caminho criam-se atritos e dificilmente se chega a uma solução satisfatória. Inclusive porque há razão dos dois lados. A Lei de anistia beneficiou a todos sem exceção, mas é o retrato de uma época, a tradução do acerto possível no último governo da era autoritária.
Além de voltar a contemplar uma fase obscura da vida brasileira, teria um viés que não faz o menor sentido 30 anos depois, insistir na punição dos torturadores equivaleria a manter os castigos impostos aos inimigos da ditadura e a pôr em risco o avanço do processo de redemocratização do Brasil. Não havia condições objetivas de fazer as coisas de outra forma. Era isso ou o retrocesso.
Hoje, quando os panos do teatro já nada representam, não faz o menor sentido retomar o tema como se não tivessem se passado três décadas e mudanças radicais não tivessem ocorrido no País.
Nesse tempo, alteraram-se a correlações de forças, o pessoal da caserna se submeteu ao poder civil, quase nada do que era aceitável naquela época, jurídica, social e politicamente falando, sobreviveu a esses trinta anos. O público ouvinte é outro. Formado por uma maioria de jovens, tem - na melhor das hipóteses - apenas uma ligeira idéia a respeito do assunto que tanto mobiliza o governo, contrapõe ministros e agora inclui os presidentes do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.
Alguma coisa dessa dimensão não adquire legitimidade na democracia se a sociedade não for partícipe. Os ministros Tarso Genro, da Justiça, Dilma Rousseff, da Casa Civil - que integrou um grupo armado e foi torturada - e Paulo Vannuchi, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, discordam. Para eles, tortura é crime comum, hediondo e, portanto, imprescritível.
Nosso Guia gostaria, segundo versão de sua assessoria, deve ver extinto o conflito em público. Mas aceita que a troca de opiniões prospere e não diz qual é a sua visão do problema. É remexer na Lei de Anistia? Se for, que diga o quanto antes. Se não for, que encerre de verdade a querela e deixe a justiça resolver. Mesmo ela enfrentará um campo espinhoso.
Para o ministro da Defesa, Nelson Jobim, "a Lei da Anistia produziu seus efeitos e é preciso olhar para frente". O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, alertou que a discussão tem "dupla face", porque o crime de terrorismo também é imprescritível: "Direitos humanos não podem ser ideologizados".
O risco é surgir uma crise institucional com base em uma lei que vai completar 30 anos. Nosso Guia prometeu convocar uma reunião entre a AGU e a Secretaria de Direitos Humanos. Analistas acham que Nosso Guia já deveria ter acabado com esse bate-boca improdutivo - chega de tanta morosidade - há três meses, quando Genro e Vannuchi começaram a defender a punição para os torturadores. Se tivessem agido antes, os pruridos crônicos e a crise não teriam grandes proporções.
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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com
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