sábado, 23 de fevereiro de 2008

Justiça para quem precisa



A jurisdição consiste em um serviço prestado pelo Estado, no qual se delega aos juízes o poder de solucionar conflitos por intermédio de normas existentes no sistema jurídico, a fim de se obter a paz social. Essa pacificação também ocorre no ambiente criminal. Vejamos um caso concreto.
Uma pessoa foi denunciada pelo crime de estelionato, pois teria recebido indevidamente do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), por cinco meses, pagamento de amparo assistencial a seu filho, menor de idade e portador de deficiência, mesmo após ele ter falecido. O prejuízo daquela autarquia federal teria sido de R$ 1.273,18. A denúncia foi rejeitada por falta de justa causa.
Na decisão, relatou-se que o menor de 11 anos vivia com problemas de saúde e percebia benefício do INSS. Após seu falecimento, sua mãe (a ré) continuou a sacar o benefício para pagar várias despesas, inclusive as decorrentes do funeral. Mesmo assim, voluntariamente ela ligou para a central de atendimento do INSS informando sobre o ocorrido e foi orientada a ir até um posto para formalizar a notícia do óbito. Ela também se dispôs a devolver o benefício em parcelas, mas não pôde fazê-lo porque desempregada na ocasião.
Não obstante ter confessado em juízo que sacou algumas parcelas do benefício, estaria presente na conduta da mãe uma excludente de culpabilidade ante o uso dos recursos para as despesas do funeral do beneficiário. Esse comportamento, que o Ministério Público Federal considerou criminoso, em verdade foi ocasionado pela doença de seu filho e seu repentino falecimento, além das condições financeiras precárias da denunciada, que na época trabalhava como doméstica. Nessas circunstâncias, "até por questão humanitária, não lhe poderia ser exigível adotar comportamento diverso, o que constitui causa supralegal da exclusão da culpabilidade."
Ressaltou-se na decisão que a acusada seria pessoa humilde e que estava desempregada há três anos, quando dos fatos, além de possuir pouca instrução (ensino fundamental incompleto), não tendo acesso a ensino público de qualidade, nem oportunidades de trabalho.
Foi frisado também que "de todas as desventuras que a vida lhe reservou, pobreza, falta de instrução, desemprego, ser mãe de um portador de deficiência, falecimento do filho, perda da única renda familiar com a cessação do benefício, só lhe faltava ser processada criminalmente, por ter claudicado uma única vez. Paradoxalmente, o mesmo Estado que sempre foi omisso em lhe proporcionar condições dignas de saúde, educação, segurança e políticas públicas essenciais, mobiliza todo seu aparato repressor em intensidade desproporcional ao dano causado.".
A decisão abordou ainda que o caso que envolve a doméstica não tem a menor semelhança com tantos outros em que figuram fraudadores contumazes da Previdência, tais como intermediários, despachantes ou aliciadores de beneficiários. Na hipótese, a própria denúncia disse se tratar de pessoa comum do povo que, por desinformação e ignorância, lançou mão de valores creditados indevidamente pelo INSS, acreditando ser legítima a sua conduta. Faltava-lhe, portanto, potencial consciência da ilicitude.
Embora o conhecimento da norma escrita tenha presunção legal absoluta, porque ninguém se isenta de cumprir a lei ao argumento de que não a conhece, há momentos em que isso deve ser abrandado, sob pena de se impor sanção a quem não a merece. Foi exatamente o que fez o juiz Federal no Pará, Wellington Cláudio Pinho de Castro, ao rejeitar a denúncia. A justiça foi dada, de fato, para quem precisa.

Roberto da Paixão Júnior é especialista em Direito do Estado

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