sábado, 15 de novembro de 2008

Somos maiores do que a Constituição?

Notícia no site Globo.com, de 10/11/2008, informou que o juiz Fausto De Sanctis, em palestra na Universidade Estácio de Sá acerca dos principais aspectos dos processos sobre lavagem de dinheiro, refutou as acusações de descontrole no uso de instrumentos como as interceptações telefônicas nas investigações do caso Daniel Dantas.
O magistrado defendeu alterações no sistema jurídico brasileiro que, segundo ele, está direcionado a não permitir condenações definitivas pelo excesso de recursos.
Também afirmou que os crimes de colarinho branco exigem que as autoridades não tomem apenas "decisões ortodoxas", porque "a Constituição deve ser mutável por excelência". Referindo-se ainda à Carta Maior, arrematou: "Ela é dinâmica, porque dinâmica é a sociedade" e "não dá para interpretar a norma e o valor desconsiderando a realidade". Por fim, enfatizou: "a Constituição não pode ser mais importante do que nós mesmos" e que "nós somos a Constituição".
Concordamos em parte com Sua Excelência.
O número excessivo de recursos contribui para que as condenações não se tornem logo definitivas. Mas concorrem para o resultado as nulidades processuais decorrentes da colheita ilegal de provas, especialmente na fase pré-processual. Entre essas, registrem-se: as escutas telefônicas e ambientais ilícitas e clandestinas; os flagrantes preparados que resultam na hipótese de crime impossível; e as prisões decretadas sem fundamento na lei.
Em relação às autoridades, que não deveriam tomar apenas decisões ortodoxas ao tratar com crimes de colarinho branco, tivemos a oportunidade de escrever em artigos anteriores sobre o direito penal do inimigo. Seu defensor, Jakobs, reconhece a existência de outro direito penal, intitulado do inimigo, situado acima do garantismo penal. Nele, o Estado deve atuar ofensivamente frente a determinados sujeitos que se comportaram, de maneira grave e reiterada, contrários às normas sociais. Há imposição de penas desproporcionais e formação de tipos penais inócuos a ameaçar algum bem jurídico ("tolerância zero"). Para essa doutrina, existem duas classes de seres humanos: pessoas e inimigos. O crime é analisado em função das personalidades potencialmente delituosas. Desde que o indivíduo represente perigo para a sociedade, deve ser afastado do convívio social. Para justificar sua agressividade, o sistema elege um inimigo (pessoas, instituições, etc.).
Esse direito foi usado na Alemanha nazista, onde a realidade deu ensejo às normas que patrocinaram o holocausto. No Brasil, foi utilizado para proporcionar 20 anos de ditadura e hoje se revela pelo Estado Policial.
A permanência dos direitos e das garantias do cidadão (criminoso ou não) é o melhor caminho.
A Constituição não é perfeita. Tanto que admite reforma. Entretanto, não podemos esquecer que perseverar no seu conteúdo significa preservar a soberania que nos permitiu promulgá-la. Não é porque a atividade criminosa avançou no País que devemos relativizar os direitos e as garantias nela assegurados.
É preciso, pois, lutar pela honra da Constituição, porque não existe letra morta em seu conteúdo. Ferdinand Lassale, na obra "O que é uma Constituição", ensinou que os fatores reais de poder, incorporados a um pedaço de papel, "já não são simples fatores reais do poder, mas que se erigiram em direito, em instituições jurídicas, e quem atentar contra eles atentará contra a lei e será castigado."
Não é dado ao juiz o poder de transformar a realidade em norma. Apesar da liberdade que possui para interpretar seu conteúdo, a função legislativa é que, ordinariamente, tem aquela atribuição.
No discurso que proferiu na sessão de promulgação da Constituição Federal, Ulisses Guimarães disse: "Traidor da Constituição é traidor da Pátria". E fixou: "Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério."
Não somos maiores do que a Constituição. Se um dia houver pessoas ou instituições superiores a ela, será porque a democracia arrumou as malas, abriu a porta e partiu do País sem dizer adeus.

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ROBERTO DA PAIXÃO JÚNIOR é bacharel em Direito
roberto.jr@orm.com.br

3 comentários:

Anônimo disse...

A coluna do jornalista Elio Gaspari, publicada em O liberal deste domingo, também tratou da matéria. Equipara de Sanctis a Luiz XIV (aquele que afirmou ser o próprio Estado).

Anônimo disse...

Muito bom os dois artigos.
Neles conseguimos vislumbrar, na visão de um jurista e na de um jornalista, o pensamento de determinadas autoridades que acreditam que podem tudo, apenas porque acham que tem uma parcela de poder.
Acredito que são artigos como estes que valorizam os jornais (impressos e digitais).
Parabéns a este blog.

Anônimo disse...

Agradeço as considerações feitas pelos anônimos.

Para o desconhecido das 9:56: não sou (e nem mereço) o título de jurista, mas registro a sua gentiliza.

Obrigado.

Roberto Paixão Junior.