À época dos anos de chumbo, muita coisa aconteceu do lado e do outro lado do poder. No livro "O Outro Lado do Poder", do general Hugo Abreu, que por quase quatro anos permaneceu como chefe do Gabinete Militar da Presidência da República do presidente Ernesto Geisel, o autor narra fatos que diz ser um depoimento, uma visão de testemunha ocular e protagonista. Como tal, os fatos narrados - e a visão destes fatos - vêm, necessariamente, condicionados pelo envolvimento direto do autor na trama que se desdobra em episódios das lutas milenares do e pelo poder. Segundo o autor, com o tempo, identificou-se a presença junto de um grupo que manobrava para assegurar-se no poder a qualquer custo. O general Abreu diz que enfrentou o grupo, embora em luta desigual, levando ao presidente certos fatos que poderiam alertá-lo contra tais manobras. Chegou a ocasião em que o próprio presidente já se havia deixado envolver por elas e passara a ser como que mais um membro do grupo. Uma dessas figuras da oligarquia era o general Golbery do Couto e Silva, já então oficialmente representante de grupos multinacionais no Brasil, como presidente da subsidiária da Dow Chemical em nosso País.
O general Golbery é personagem a merecer estudos profundos na qualidade, em primeiro lugar, de imbatível conhecedor não só de geopolítica como conhecedor da alma dos privilegiados do Brasil. Sem dar-se conta disso, eles se portam conforme o figurino traçado por quem já foi considerado como o Merlin da Corte. Quem o conheceu parece ouvir a gargalhada borbulhante do general enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) nega a revisão da Lei da Anistia pedida pela OAB.
Não cabe, evidentemente, enxergar em Castelo Branco ou em Geisel reencarnações do rei Artur. Não passaram de marionetes nas mãos do seu chefe da Casa Civil. João Figueiredo, lá pelas tantas, quando explodiram as bombas do Riocentro, tentou livrar-se do titereiro e conseguiu. Nem por isso escapou ao roteiro determinado previamente por Golbery. Com a inestimável contribuição de um professor gaúcho, Leitão de Abreu, que falava alemão, mas não conhecia a alma dos privilegiados.
Protagonista brasileiro da Guerra Fria, atento ao descompasso das arritmias da política nativa, Golbery criou a ideologia do golpe de 1964 e, a partir de dez anos depois, ditou as regras da distensão que virou abertura. Fatais a derrota das Diretas Já, a enésima consagração da conciliação das elites na Aliança Democrática e a eleição indireta de janeiro de 1985. Disputada por quem Golbery previamente escolhera: Tancredo Neves e Paulo Maluf.
Agora, o relator Eros Grau verteu lágrimas, pelo conforto dos torturadores. A história assinala um placar por 7 a 2. O Supremo mantém intacto a interpretação da Lei da Anistia. Grau, em voto de quase três horas, apreciou o mérito da arguição e concluiu pela sua improcedência. No final, e emocionado, chorou copiosamente. Provavelmente, as lágrimas não verteram em face das famílias dos 114 assassinados durante o regime. Nem dos descendentes e conviventes com os 125 desaparecidos. Talvez tenha se emocionado por ouvir os seus argumentos e a própria voz, por horas.
A Lei da Anistia, consoante Grau, era bilateral, de mão dupla, como disse em reforço o ministro Celso de Mello. Em resumo, os crimes políticos e os que atentaram aos direitos humanos dos opositores ao regime estavam cobertos pela anistia, por conexão. Segundo o ministro, a Emenda 26, de convocação da Assembleia Nacional constituinte, havia balizado os futuros constituintes e expressamente admitia a anistia ampla, geral e irrestrita.
A Justiça de São Paulo, em 09.10.2008, declarou o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra responsável pela tortura de Maria Amélia de Almeida Teles, seu marido, o jornalista César Augusto Teles e sua irmã Criméia Schmidt de Almeida. Ustra é ex-comandante do Destacamento de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), o centro de repressão da ditadura militar. A decisão aconteceu em uma quarta-feira (09.10.2008), da lavra do juiz da 23ª Vara Cível de São Paulo.
A ação tem caráter exclusivamente declaratório, ou seja, pede apenas o reconhecimento pela Justiça de que Ustra foi responsável pelas torturas.
O certo é que essas feridas parecem não querer cicatrizar. O STF tomou uma decisão de natureza política e técnica, pois convencido, por larga maioria, em garantir a tese de que a anistia era ampla, geral e irrestrita. Algo lamentável, em pleno século de conquistas no campo humanitário. Infelizmente, por 7 a 2, venceram os torturadores. Como Grau e Golbery, os Ustra devem estar a derramar prantos. De contentamento.
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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com
O general Golbery é personagem a merecer estudos profundos na qualidade, em primeiro lugar, de imbatível conhecedor não só de geopolítica como conhecedor da alma dos privilegiados do Brasil. Sem dar-se conta disso, eles se portam conforme o figurino traçado por quem já foi considerado como o Merlin da Corte. Quem o conheceu parece ouvir a gargalhada borbulhante do general enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) nega a revisão da Lei da Anistia pedida pela OAB.
Não cabe, evidentemente, enxergar em Castelo Branco ou em Geisel reencarnações do rei Artur. Não passaram de marionetes nas mãos do seu chefe da Casa Civil. João Figueiredo, lá pelas tantas, quando explodiram as bombas do Riocentro, tentou livrar-se do titereiro e conseguiu. Nem por isso escapou ao roteiro determinado previamente por Golbery. Com a inestimável contribuição de um professor gaúcho, Leitão de Abreu, que falava alemão, mas não conhecia a alma dos privilegiados.
Protagonista brasileiro da Guerra Fria, atento ao descompasso das arritmias da política nativa, Golbery criou a ideologia do golpe de 1964 e, a partir de dez anos depois, ditou as regras da distensão que virou abertura. Fatais a derrota das Diretas Já, a enésima consagração da conciliação das elites na Aliança Democrática e a eleição indireta de janeiro de 1985. Disputada por quem Golbery previamente escolhera: Tancredo Neves e Paulo Maluf.
Agora, o relator Eros Grau verteu lágrimas, pelo conforto dos torturadores. A história assinala um placar por 7 a 2. O Supremo mantém intacto a interpretação da Lei da Anistia. Grau, em voto de quase três horas, apreciou o mérito da arguição e concluiu pela sua improcedência. No final, e emocionado, chorou copiosamente. Provavelmente, as lágrimas não verteram em face das famílias dos 114 assassinados durante o regime. Nem dos descendentes e conviventes com os 125 desaparecidos. Talvez tenha se emocionado por ouvir os seus argumentos e a própria voz, por horas.
A Lei da Anistia, consoante Grau, era bilateral, de mão dupla, como disse em reforço o ministro Celso de Mello. Em resumo, os crimes políticos e os que atentaram aos direitos humanos dos opositores ao regime estavam cobertos pela anistia, por conexão. Segundo o ministro, a Emenda 26, de convocação da Assembleia Nacional constituinte, havia balizado os futuros constituintes e expressamente admitia a anistia ampla, geral e irrestrita.
A Justiça de São Paulo, em 09.10.2008, declarou o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra responsável pela tortura de Maria Amélia de Almeida Teles, seu marido, o jornalista César Augusto Teles e sua irmã Criméia Schmidt de Almeida. Ustra é ex-comandante do Destacamento de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), o centro de repressão da ditadura militar. A decisão aconteceu em uma quarta-feira (09.10.2008), da lavra do juiz da 23ª Vara Cível de São Paulo.
A ação tem caráter exclusivamente declaratório, ou seja, pede apenas o reconhecimento pela Justiça de que Ustra foi responsável pelas torturas.
O certo é que essas feridas parecem não querer cicatrizar. O STF tomou uma decisão de natureza política e técnica, pois convencido, por larga maioria, em garantir a tese de que a anistia era ampla, geral e irrestrita. Algo lamentável, em pleno século de conquistas no campo humanitário. Infelizmente, por 7 a 2, venceram os torturadores. Como Grau e Golbery, os Ustra devem estar a derramar prantos. De contentamento.
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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com
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