domingo, 26 de outubro de 2008

Fogos e fogo numa noite de luz

JOÃO CARLOS PEREIRA

Os fogos do Círio são, depois da corda, a mais completa expressão do amor dos homens por Nossa Senhora. Em nome da fé, enchem os céus de Belém com luzes e formas que, ao mesmo tempo em que são efêmeras, ficam, para sempre, em nossa memória visual. É uma forma rara de homenagear a Padroeira. Os fogos são exatamente como as flores que damos a uma pessoa a quem é dificílimo escolher um presente, pelo fato de já ter tudo que deseja. Esse é o caso da Senhora de Nazaré. Além do coração, só podemos oferecer-lhe flores e fogos.
Este ano, assisti ao espetáculo do final da quadra nazarena da sacada de amigos queridos. Foram dez minutos de beleza que subia ao céu, para, simbolicamente, chegar mais perto da Senhora. Era a visão do paraíso. Momentos depois de encerrada a homenagem, eis que outra possibilidade de beleza surgiu no horizonte. Desta vez, bem diferente do que havia acabo de ver, surgia uma visão do inferno.
Com os olhos fixos no show que veio da China, para que os paraenses, mais uma vez, dissessem o quanto amam Maria de Nazaré, nem me apercebi que, do outro lado da cidade, o fogo consumia treze casinhas de madeira e colocava um ponto final da esperança e na alegria de pessoas simples que, possivelmente, haviam preferido ver outro tipo de espetáculo, num lugar onde há tempos os bombeiros pouco ou nada têm o que fazer. Nazaré é um bairro privilegiado. Não fosse pela bandidagem crescente, seria um paraíso. De longe, divisei ver o incêndio. Quis me iludir, achando que era uma embarcação que ardia. Claro que não era. No dia seguinte, minhas suspeitas se confirmaram: uma tragédia transformava pessoas pobres em gente ainda mais miserável.
Na segurança em que me encontrava, a quilômetros da tragédia, não consegui me deixar envolver pela beleza plástica daquele momento. O fogo - apesar da desgraça que produz - é um espetáculo raro. Há alguns dias, os poloneses julgaram ter visto, nas labaredas de um incêndio, a silhueta de João Paulo II. Acho que eles são capazes de enxergar a imagem do Papa em qualquer lugar ou em qualquer circunstância. Wojtyla virou a alma da Polônia. É uma relação de alucinada paixão, que se justifica por si só. Vi, na internet, a foto do sinistro e também achei que o fogo desenhava as formas do falecido pontífice. Em Belém, nada consegui ver, a não ser uma chama enorme, que anunciava desgraça. Outubro é um mês em que sempre acontecem incêndios. Imagino que seja por causa da secura e das queimadas. Este ano, o mau destino revelou-se pior.
Depois da festa da Padroeira, pude admirar, do alto, o trechinho da cidade que morria. Ninguém sabia, exatamente, o que se passava. Sabia, sim, que, por trás da beleza, havia a dor. Me senti, naquela hora, em que na casa de nossa amiga havia festa e alegria, da mesma forma quando preciso abrir passagem para que uma ambulância passe na frente de todo mundo e chegue aos eu destino rapidamente. Ainda que consiga sair do caminho, me sinto impotente e, de certa maneira, culpado.
Depois de um espetáculo de luz, surgiu, ao longe, um outro de sofrimento e de morte. A beleza das chamas murmurava, ao longe, gemidos. Era uma espécie de má compensação. Deixei-me ficar, por alguns momentos, preso à contemplação do incêndio. À distância, tudo ganha nova dimensão. De perto, com diz Caetano Veloso, ninguém é normal. Nada e ninguém. O que salva é a solidariedade que, sem a prática, não passa de peça de ficção. Na vida real, há a dor que não acaba mais e consome o que restou de belo, numa noite que pura luz.

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JOÃO CARLOS PEREIRA é professor e jornalista
jcparis@orm.com.br

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