domingo, 6 de abril de 2008

A ressurreição de David Mamet

“A indignação da esquerda com a ressurreição de Mamet não mostra apenas a intolerância típica das patrulhas, que apenas reproduzem a mentalidade típica dos inquisidores”, diz neste artigo de João Pereira Coutinho, colunista da Folha. Confira.

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TENHO PASSADO os últimos dias na companhia de David Mamet. É uma boa companhia. Para ser mais exato, tenho traduzido uma das peças de Mamet, "Oleanna", ilustração perfeita de como o pensamento politicamente correto acaba por corromper as relações humanas de forma sinistra. Então encontramos John, professor universitário, e sua aluna Carol, que confessa no primeiro ato algumas dificuldades acadêmicas. John escuta tudo e, com infinita bondade, propõe-se a ajudar Carol nos estudos. Não sem antes confessar, em momento de intimismo heterodoxo, que também ele sente fragilidades de todo o tipo: pessoais, profissionais, matrimoniais. Errar é humano. Ter medo de errar, mais humano ainda. E quem, em juízo perfeito, nunca pôs em causa a sua existência?
Nos dois atos seguintes, encontramos o resultado da sinceridade de John, denunciado pela aluna à direção da faculdade. Ele procurara ajudar? Ele fora honesto na confissão das suas fragilidades?
Para Carol, a atitude do professor era uma forma pouco respeitosa de exercer as suas funções. A "ajuda" proposta, sobretudo de quem confessara problemas no matrimônio, uma forma indireta de assédio. E, no terceiro ato, a aluna sobe a parada: o professor não tentara apenas assediá-la, mas violá-la. A peça termina numa explosão de violência, depois de uma carreira profissional destruída pela imaginação neurótica da aluna.
Li e reli a peça de Mamet com uma admiração sincera e, por ironia mortal, o próprio autor escreveu texto de Páscoa no "Village Voice". Digo "texto de Páscoa" porque Mamet narra a história de uma ressurreição: depois de décadas de mortificações e enganos, Mamet descobriu que não era mais um "liberal" (no sentido americano e esquerdista da coisa). A esquerda advoga uma visão otimista da natureza humana, tal como defendida por Rousseau, o patrono da seita? O mundo reflete precisamente o oposto: cinismo, oportunismo, mesquinhez. E mal, muito mal.
Mas Mamet não se fica pela filosofia. Ele desce aos particulares. Bush é um idiota? Kennedy não era um idiota menor. Bush levou os americanos para o Iraque? Kennedy inaugurou o Vietnã. Bush roubou a eleição na Flórida? Kennedy fez o mesmo em Chicago. Bush mentiu sobre a sua folha de serviço militar? Kennedy aceitou um Pulitzer por livro escrito por Ted Sorenson. Bush dormiu com os sauditas? Kennedy dormiu com a Máfia.
Moral da história? Em política, não há heróis. O poder é tendencialmente corrupto porque o poder é exercido por homens, não por anjos. A principal preocupação de uma sociedade civilizada deve ser a de limitar o poder, ou seja, limitar as oportunidades de abuso, tarefa a que a Constituição americana se entregou desde o início e que Mamet aplaude. Porque os homens, cedo ou tarde, acabam por abusar: acabam por interferir na conduta privada dos seres humanos, cerceando as liberdades e explorando a ingenuidade alheia.
As confissões de Mamet geraram o burburinho esperado, sobretudo entre a esquerda, que não gostou desse Judas pascoal. Eu não entendo a polêmica. Desde logo porque eu nunca olhei para Mamet como um autor "liberal". Lendo os seus textos, a começar pelo teatro e a terminar no ensaio, estão presentes os traços fundamentais de uma visão pessimista e conservadora sobre a natureza humana que nunca o abandonou.
No teatro, as personagens de Mamet são casos clássicos de ganância antropofágica (ler "Glengarry Glen Ross"), misoginia brutal ("Bobby Gould in Hell"), imoralidade hollywoodesca ("Speed-the-Plow") e, como no referido "Oleanna", anatomia de um pensamento politicamente correto convertido em arma de perseguição e destruição.
E, se dúvidas houvesse, bastaria ler a prosa ensaística de Mamet para desfazer qualquer dúvida: o seu "The Wicked Son" não é apenas uma denúncia do anti-semitismo ocidental que, depois de Auschwitz, continua a exercer-se sob a capa simpática do "anti-sionismo". É também, ou sobretudo, uma reflexão sobre o desprezo que os próprios judeus devotam à sua condição, uma espécie de "náusea de si próprios".
A indignação da esquerda com a ressurreição de Mamet não mostra apenas a intolerância típica das patrulhas, que apenas reproduzem a mentalidade típica dos inquisidores. Mostra também a ignorância dela. Mamet escreve entre nós há 40 anos. Onde estiveram os zelotes durante todo esse tempo?

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