domingo, 27 de abril de 2008

A intimidade e o direito à informação

Antes de começar a ler aqui, leia o post “Será que a Imprensa sabe tudo?”, do especialista em Direito do Estado Roberto da Paixão Duarte. Depois, se igualmente ainda não leu, leia aí embaixo o comentário do cientista político Juvêncio de Arruda, que também tem experiência no ramo da publicidade e propaganda e já teve uma breve passagem pelo jornalismo.
Feitas as leituras, venha pra cá.
Não é raro que muitas vezes seja tênue, para não dizer quase imperceptível, o limite entre a intimidade e o interesse público, entre o interesse público e a privacidade, entre a imposição de consciência do jornalista de noticiar um fato e de sopesar outros valores que não podem ser desprezados.
Nem a propósito, no final de março passado o poster participou em Brasília de um encontro de assessores de comunicação. Quem fechou o evento foi o veterano jornalista Carlos Chagas, que abordou o tema “A ética e o jornalismo”. Apenas para provocar a platéia, Chagas propôs a seguinte situação.
O chefe de reportagem manda repórter e fotógrafo cobrirem um engarrafamento quilométrico numa ponte. Na ponte, o fotógrafo vê sair de um carro o motorista que vai para a beirada e dá demonstrações evidentes de que vai se atirar lá de cima. E se ele cair, fatalmente vai morrer, porque a altura é considerável. O homem está à distância de alguns passos do fotógrafo, que poderá contê-lo a tempo e poderá preservar-lhe a vida. Do contrário, se deixar que o homem se jogue para a morte, o fotógrafo, único jornalista que está naquele momento no local, terá a foto do ano: o homem se atirando de cima da ponte. E aí? O fotógrafo se limita ao seu papel de jornalista e espera o fato acontecer ou perde o furo, mas salva um ser humano?
Histórias como essa, transpostas para o dia-a-dia, criam dilemas éticos de monta, que exigem do jornalista a tarefa dificílima de procurar, no corre-corre de uma das profissões mais estressantes do mundo, decidir rapidamente. E o jornalista é aquele que muitas vezes não tem um dia, três horas ou duas horas para decidir. Às vezes, restam-lhe dez ou 15 minutos para decidir, porque as rotativas estão à espera. Quem é de redação ou já passou por ela sabe disso.
Roberto está certo quando advoga limites impostos pela Justiça – no caso, o Estado, o único aplicador da lei. E fora do Estado, ninguém mais. E Juvêncio está certo ao defender que “nenhum direito é mais fundamental que o acesso à informação”. Mas é certo também que esse direito fundamental envolve o tratamento que se dá à informação, a oportunidade de levá-la a público, a forma como é transmitida e o direito – também fundamental – de que se ofereça o direito de defesa a quem é alvo de acusações como a que o pai e a madrasta da menor estão sofrendo.
Aliás, neste caso específico, discute-se um crime de homicídio. Homicídio envolve ofensa à vida, o mais precioso dos bens. Não terá sido um exagero impor sigilo a um caso desses? Quantos homicídios tão brutais como o de Isabella ocorrem, sem que se imponha sigilo? Agora mesmo, todos estão chocados com a morte brutal de uma criança em Bragança. O que é preciso é garantir-se aos acusados todas as garantias legais e constitucionais previstas. E tais garantias envolvem, inclusive, o direito de negarem absolutamente tudo até mesmo perante o Juízo Criminal, caso venham a ser denunciados – porque indiciados já estão – pelo Ministério Público e a denúncia seja acolhida pelo juiz.
Não se pode vulgarizar o sigilo, decretando-o em qualquer ocasião, sobretudo quando o interesse público prepondera. E o interesse público na maioria das vezes contém a necessidade de invadir-se a intimidade de alguém. O simples fato de se acusar uma pessoa é impactante na individualidade do outro – independentemente de ser o outro culpado ou não. Mas não se pode, por causa disso, relegar o direito de informar a um patamar inferior. Até porque, de cada dez suspeitos de um crime, nove – senão os dez – batem no peito e dizem: “Não fui eu”. Dizem assim mesmo que todas as provas, todas as evidências demonstrem o contrário.
Lembremo-nos dos mensaleiros. Todos, sem exceção, apresentaram as mais estapafúrdias versões, muito embora não pudessem negar que receberam o dinheiro de origem espúria. Foram indiciados, denunciados e vão se defender em juízo. É assim que funciona.
Tem mais - e isso envolve sempre enorme polêmica. O timing da Imprensa e do Judiciário é diferente. Muitíssimo diferente e contrastante. Se a Imprensa for esperar que o Judiciário prolate suas sentenças e decisões para só então informar, não teríamos jornalismo. Teríamos diário oficial do jornalismo.
Esses casos de grande clamor, como o que envolve o caso Isabella, remetem ao sempre emblemático escândalo de Watergate. Bob Woodward e Carl Bernstein, os dois repórteres do The Washington Post que escreveram as matérias mais contundentes que levaram à renúncia do então presidente Richard Nixon, passavam semanas e semanas para checar e comprovar determinada informação.
Checada a informação, apresentavam-se na redação diante de Ben Bradlee, então diretor-executivo do Post, e diziam mais ou menos assim:
- Está tudo aqui, chefe. Todas as provas estão aqui.
E Bradlee, depois de submetê-los a uma sabatina:
- Vocês sabem quem estão acusando? O presidente dos Estados Unidos da América. Voltem pra rua. Vão apurar mais.
E lá iam os dois repórteres apurar mais. Iam furiosos, porque imaginavam que já tinham elementos suficientes para escrever a matéria e, mais do que isso, imaginavam que a matéria seria manchete no dia seguinte.
É assim que deve ser. Nós jornalistas, se nos fosse possível, não deveríamos errar nunca, porque não nos é dado o direito de manchar – e às vezes destruir – reputações irremediavelmente. É preciso que façamos jus à nossa convicção de que o acesso à informação é direito dos mais fundamentais e elementares.
Para isso, muitas vezes é preciso que, mesmo quando temos em mãos provas que consideramos inequívocas, saiamos outra vez às ruas para apurar mais.
Da mesma forma que o velho Bradlee mandava seus repórteres fazerem.

2 comentários:

Anônimo disse...

Perfeito, Paulo! Posição equilibrada - e ética. Endosso sem reservas. Parabéns! E um domingo lindo para você!

Poster disse...

Olá, Franssi.
Pois é, nós jornalista e essas questões complicadas. Mas assim é que é bom. Com tempero, é sempre melhor (rssss).
Abs. e ótimo domingo pra você também.
Abs.