No Blog do Noblat:
O repórter Valmir Salaro, da Rede Globo, que ontem entrevistou no programa "Fantástico" o casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, deu a primeira notícia sobre a Escola Base. Depois se abateu com o linchamento moral dos denunciados e desde então faz o que o conjunto da mídia deveria fazer: por mais espetacular que seja a notícia e mais eloquente o delegado, Salaro checa antes de divulgar.
Mais de uma vez convenceu os chefes de que a notícia era boa mas seu efeito ruim demais para que fosse publicada sem equidade. Mais de uma vez, viu a notícia nos concorrentes enquanto aprofundava sua investigação.
Seu depoimento publicado no site do Instituto Gutenberg em novembro/dezembro de 1996:
Hoje eu sinto muita, muita dificuldade para fazer reportagem policial. Sinto-me usado, me sinto como um carrasco, quando o papel do repórter teria de ser outro; ele teria que fiscalizar a polícia e ajudar a sociedade. Hoje você acaba sendo uma espécie da ponta-de-lança da polícia. Se a polícia apresenta uma pessoa como sendo um “grande bandido”, você acaba embarcando e divulgando essa versão, e muitas vezes prejudica a vida desse suposto bandido que na verdade não passa de um coitado.
Recentemente acompanhei o caso de um ex-segurança que acusou a família Matarazzo. Depois o suspeito foi preso e desmentiu tudo. Fiz duas horas de entrevista, sem ele saber, com uma câmera escondida, e não colocamos a matéria no ar. O Diário Popular deu manchete, escrachou a dona Maria Pia; a Veja embarcou na história, o Jornal da Tarde fez matéria de páginas. O caso não teve tanta repercussão como erro da imprensa, mas eu o qualifico como semelhante ao da Escola Base. Acontece que as pessoas que foram denunciadas têm muito dinheiro, e isso acabou não abalando a vida delas. A Maria Pia não se manifestou, e todo mundo já esqueceu a notícia.
Teve um caso recente de um promotor de Justiça que fez uma investigação pessoal com base numa informação de um delegado. Segundo a investigação, toda quarta-feira, num restaurante na Marginal, um grupo de políticos, comandantes da PM, delegados, deputados e um procurador de Justiça almoçavam com um homem que seria braço direito do bicheiro Ivo Noal, com um passado na contravenção. A denúncia era muito forte, mas sem prova. Todo esse material veio pra minha mão inclusive com uma fita gravada. A decisão do promotor era mandar apurar. Só que a gente não divulgou porque não tinha uma prova concreta. A rádio Bandeirantes divulgou, o Diário Popular divulgou, o Jornal da Tarde divulgou, o SBT divulgou. Resultado: todos os envolvidos — acho que são 35 delegados, um procurador e oficiais da PM — estão processando a imprensa, porque não ficou comprovado o envolvimento deles com o tal homem. A princípio todos são inocentes.
Esses erros estão sendo cometidos todos os dias. Quando eu saio pra rua pra fazer uma matéria fico preocupado: será que vou acertar, vou errar, vou precisar de quatro, cinco dias pra investigar a história, a minha chefia vai admitir que eu faça essa investigação durante todos esses dias, a minha concorrência como é que fica? Quer dizer, o repórter hoje está sendo superquestionado, e tem que ser mesmo. Não vejo uma saída a princípio para isso, a não ser reconhecer o erro imediatamente, imediatamente dar o mesmo espaço ou espaço ainda maior para o desmentido, se for necessário. No caso do pessoal da Escola Base eu virei testemunha de acusação contra o delegado. E fiz várias matérias sobre o drama que vivem hoje os seis inocentes.
O que estou reavaliando é como vou lidar com essas fontes, em quais fontes posso realmente confiar, e, mesmo confiando, ir buscar outras alternativas para checar a informação, quer dizer, redobrar a minha atenção, ficar sempre atento. O grande mal é a polícia partir do suposto suspeito para esclarecer o crime. Ninguém controla a polícia. É um poder paralelo. Eu fiz uma matéria que me assustou: onze policiais envolvidos com droga, craque e álcool. Imagina os policiais de rua loucos de tanto fumar craque. Qual o equilíbrio que um homem desses tem?
Não adianta discutir o jornalismo policial se não discutir esses programas de TV que estimulam a truculência, a violência e a impunidade dos policiais: Aqui Agora, Cidade Alerta, Rota do Crime. Esse tipo de imprensa acaba contribuindo para fortalecer o poder da polícia. As equipes do Aqui Agora chegam junto com a polícia. Um dia desses Rota do Crime pediu pra PM fazer uma batida numa periferia da Zona Leste. Os PMs espancaram todo mundo, mulher grávida, crianças, um absurdo, e foi tudo filmado. Isso era motivo para prender todos, imediatamente, tirar os policiais da rua e tirar esse programa do ar...
A corrupção, a prepotência estão enraizadas em alguns setores da polícia. Um suspeito é levado para a delegacia e muitas vezes é torturado para confessar. Você não pode confiar na polícia, nunca pôde e agora menos ainda. Não pode confiar na testemunha, não pode confiar nem na vítima, o que é muito mais trágico. Você não sabe se a vítima está mentindo para se promover, para prejudicar uma outra pessoa. Está difícil fazer jornalismo na minha área. Você lida com a incompetência, a prepotência e a violência dos policiais. Eles acham que têm o poder para tudo, poder do bem, do mal, poder de espancar, torturar, e ficam impunes. O presídio da Polícia Civil está cheio de policiais que roubaram, mas os que cometeram violências físicas, espancamentos, esses não estão na cadeia. Em casos como o da Agroceres isso não aconteceu porque tinha muita gente ali pra fiscalizar o trabalho do delegado, e ele também não era louco de torturar o filho de um grande empresário. Mas eu ficava pensando: se isso acontece na periferia...
Um dia o delegado me ligou e disse:
— Eu tenho um laudo da Polícia Técnica que comprova que o Frederico, filho do empresário, é suspeito: tinha partículas de metal na mão, indicando que ele matou o pai.
A partir daí nós acompanhamos a investigação durante dois meses sem colocar absolutamente nada no ar. Só demos a notícia da morte do dono da Agroceres no dia e demos que a primeira suspeita era de suicídio. Durante dois meses acompanhamos a investigação da polícia, não divulgamos mais nada a partir do momento que eu tive aquela informação do delegado. Roberto Muller era o diretor da TV Globo em São Paulo, falei com ele e ficou acertado: “Tudo bem, não vamos divulgar nada até a polícia concluir o caso”.
Acompanhamos o depoimento de testemunhas, do próprio Frederico, tudo. Passamos dois dias no Instituto de Criminalística filmando todo trabalho de recolhimento da prova técnica, o exame residuográfico, que era fundamental na investigação. O perito Osvaldo Negrini foi o mesmo que fez o trabalho na Casa de Detenção, que comprovou as execuções dos 111 presos com um laudo fabuloso que hoje é exemplo de investigação científica no Brasil. Um perito sério e independente. Ele nos mostrou como foi feito o trabalho para coletar as partículas de metal da mão do Frederico. O material foi colocado num equipamento da Polícia Técnica —só existem cinco no mundo — que aumenta 30 mil vezes qualquer coisinha invisível a olho nu. Eles fizeram um laudo detalhado.
Nós filmamos fase por fase o trabalho da Polícia Técnica. Os peritos dispararam a arma que o Frederico usou, para colher com um adesivo especial as partículas. Esse material passou para o setor de química da Polícia Técnica, depois foi analisado no microscópio eletrônico, e aí deu o resultado positivo. Com base nisso, o delegado ouviu outras testemunhas, investigou a vida do Frederico, que tinha um relacionamento traumático com o pai.
A prova técnica foi fundamental pra me convencer, pra convencer a polícia, o Ministério Público e a Justiça de que ele é suspeito de matar o pai. Se houve intenção ou não, é uma outra discussão. Ele deve ir a julgamento no começo do ano.
Pusemos uma matéria no Jornal Nacional, de cinco minutos, com todos esses detalhes da investigação. Na entrevista, o perito diz que com base naquele laudo pode afirmar que o Frederico matou o pai. Ele fala isso mesmo, mas eu repeti a entrevista várias vezes pra ele confirmar que estava dando o depoimento com base no laudo: “O garoto matou o pai.”
Eu acho que esse trabalho teria de ser feito com todos os casos policiais. Hoje não tenho dúvida disso. Acho que não se deve divulgar de primeira, como eu não dei notícia no caso dos Matarazzo, como eu não dei a notícia no caso dos policiais, deputados e coronéis que estariam participando de um almoço suspeito, quer dizer, a Globo não deu, as outras emissoras deram, tanto é que estão sendo processadas por “danos morais”.
Outro caso interessante foi o do Zezinho do Ouro, que acusou muitos policiais de corrupção. Eu só coloquei no ar o nome das pessoas que consegui ouvir. Ele acusava mais de setenta policiais e eu consegui ouvir acho que cinco ou seis. Esses policiais foram condenados. Eu fiz questão de procurá-los para entrevistar e eles disseram que era mentira, invenção do Zezinho do Ouro. Muitos jornalistas que deram a lista toda e estão sendo processados.
Estou lembrando três, quatro, cinco exemplos semelhantes à Escola Base, que aconteceram depois da Escola Base, dos quais ninguém tomou consciência. Você sabe que houve um erro mas acaba esquecendo, e se esquece comete outros. A Escola Base vive permanentemente na minha cabeça. É um ponto de referência. Fiz uma matéria na semana retrasada num asilo e pedi pro cinegrafista: “Não quero imagem de rostos, nem das velhinhas nem das crianças, porque é uma segunda violência”. Mostramos as más condições do asilo sem mostrar o rosto de ninguém.” E foram ouvidos os suspeitos.
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