sábado, 12 de abril de 2008

O dossiê e o caminho do crime



Entre o plano criminoso que surge no foro íntimo do indivíduo e a consumação do delito existe um processo que pode não se exteriorizar a ponto de ser observado por algum espectador. Trata-se do iter criminis (caminho do crime), cujo conceito é o conjunto de etapas que se seguem, cronologicamente, no desenvolvimento do crime.
O comportamento criminoso se compõe de duas fases. A primeira, intitulada interna, é a da cogitação. Nela, o agente mentalmente fixa a infração penal e antecipa o resultado que deseja alcançar. Essa etapa não é punida em nosso sistema jurídico-penal. Nessa fase, há também a preparação, momento em que a pessoa escolhe os meios a serem usados no cometimento do delito e reflete sobre os efeitos que sua conduta poderá causar.
A segunda, definida como externa, o agente põe em prática a fase interna. Exterioriza a vontade de cometer o crime e ingressa nos atos de execução, quando duas situações podem ocorrer. O agente consuma o delito pretendido ou, em razão de situações alheias à sua vontade, o mesmo não se realiza. Nesta última hipótese, registra-se o crime tentado.
É possível, ainda, haver o exaurimento do delito, fase situada depois da consumação. Para entendê-la melhor, veja o seguinte exemplo: aquele que oferece vantagem indevida a funcionário público pratica corrupção ativa. Basta, pois, esse oferecimento. Se a oferta se efetiva, haverá mero exaurimento do delito.
O governo federal acionou a polícia para apurar o vazamento do dossiê que revelou gastos sigilosos do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Mas o ministro da respectiva pasta, em reportagem veiculada pelo "Jornal Nacional", disse que a investigação seria restrita a descobrir o autor do vazamento. Porém, há um equívoco nesse entendimento.
Conforme demonstrado, há um iter criminis (caminho do crime) que não pode deixar de ser investigado. Em matéria de ação penal pública, as condutas não podem ser fracionadas com o objetivo de eleger quem deverá ser denunciado, ou seja, escolher quem sentará no banco dos réus.
Na questão, o governo federal faz entender que o crime se deu apenas no instante do vazamento para a Imprensa. Entretanto, análise mais criteriosa talvez revele que a consumação do delito pode ter ocorrido quando da confecção da planilha que ensejou o dossiê, especialmente se o fato for enquadrado no tipo penal descrito no art. 325 do CP (violação do dever de sigilo funcional).
E isso porque um dos núcleos verbais desse crime, consistente em revelar - que significa comunicar, transmitir ou dar a conhecer a terceira pessoa -, incidiu a partir do momento em que os dados confidenciais foram passados para o autor da planilha pela pessoa responsável em manter a guarda do sigilo. Ora, os dados constantes do dossiê eram sigilosos desde a origem, e nessa condição ninguém estaria autorizado a manuseá-los, salvo no interesse da administração pública. Aliás, segundo o governo federal, esse banco de dados sigilosos foi sugerido pelo Tribunal de Contas da União, que desmentiu tal sugestão.
Portanto, não só o vazamento do conteúdo sigiloso, mero exaurimento do crime, deve ser apurado, mas as autoridades policiais também devem procurar elucidar o caminho do crime, pois, como frisado antes, entre o plano criminoso que surge na mente dos indivíduos e a consumação do delito, existe um processo que pode não se exteriorizar, à primeira vista, a ponto de ser observado por algum espectador, no caso a população brasileira.

Roberto da Paixão Júnior é especialista em Direito do Estado
imcpaixao@superig.com.br

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