Respeitemos a decisão de qualquer instância do Poder Judiciário, mas discordemos dela.
Respeitemos as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), mas preservemos intacto o nosso direito de discorda dela.
Sim, discordemos até do Supremo, muito embora ali estejam, em tese, as maiores sumidades do saber jurídico da magistratura, eis que integrantes da Corte Máxima.
Mas uma decisão como a que o Supremo tomou, acabando com a obrigatoriedade do diploma profissional para jornalistas, induz a sociedade a fazer confusões conceituais a que nós, pobres mortais comuns – que não temos as excelências intelectuais de Suas Excelências os ministros do Supremo -, não poderíamos e nem deveríamos ser induzidos pelas sapiências de carne e osso do STF.
Comecemos pelo mais simples.
Talvez a primeira qualidade do jornalista não seja o domínio pleno, correto e escorreito do idioma.
Para o pessoal aqui da redação, esta não é a primeira qualidade.
A primeira qualidade é ser curioso.
Jornalista que não é curioso, que não se interessa em saber até se o cachorro vira-lata está realmente dormindo ou está morto à beira de uma calçada, jornalista sem curiosidade, portanto, não é jornalista.
A segunda qualidade que se exige de um jornalista – ainda segundo as avaliações do pessoal aqui da redação – é que não seja mentiroso, é que se aferre à verdade com o mesmo vigor com que o torcedor do Remo se aferra à bandeira de seu clube e o torcedor bicolor à de sua agremiação.
Mal comparadamente, o jornalista mentiroso é como o sacerdote que vive a cometer pecados – mas não pecado veniais, e sim pecados mortais.
A terceira qualidade que se exige de um jornalista, aí sim, é a de que domine o idioma. O jornalista, é evidente, não precisa ser um literato. Não se exige que seja um padre Antônio Vieira. Basta que escreva claro, direto, objetivamente, sem rodeios. Basta que seja simples. Basta que se faça entender facilmente. Se o Ivo viu a uva, basta, então, que esteja lá no lead (abertura) da matéria: “O Ivo viu a uva”. E pronto. Todo mundo entendeu.
Há outras muitas qualidades que se exigem de um jornalista, mas estas três são as principais – a curiosidade, o compromisso com a verdade e o domínio com do idioma. As restantes são consequência.
Os poderes do diploma
Diploma de terceiro, quarto, quinto ou décimo grau é capaz de “ensinar” alguém a ser curioso?
É certo que não.
Diploma de terceiro, quarto, quinto ou décimo grau é capaz é capaz de “ensinar” um ministro do Supremo Tribunal Federal a ter comedimento e compostura?
É certo que não.
Diploma de terceiro, quarto, quinto ou décimo grau é capaz de “ensinar” um advogado, um economista, um oceanógrafo ou um paleontólogo a ter ética?
É certo que não.
Há jornalistas brilhantes que não têm diploma, porque são da época em que ainda não havia essa exigência.
Há jornalistas com um texto absolutamente primoroso, mas não frequentaram um curso superior – nenhum.
Há jornalistas com um senso ético dos mais apurados, mas que nunca frequentaram as academias – nenhuma.
Assim como há brilhantes juízes de interior – mais brilhantes do que qualquer ministro do Supremo Tribunal Federal, inclusive.
Isso demonstra que o diploma não é tudo.
Está muito longe de ser tudo.
Claro. Isso é de uma evidência solar.
O diploma apenas é um atestado de que o diplomado apresenta alguns requisitos básicos para o exercício de uma profissão.
Daí não ser possível aceitar interpretações como as expendidas pelo relator, ministro Gilmar Mendes (na foto acima, extraída do site do próprio Supremo).
Jornalismo e liberdade de expressão
Disse Sua Excelência que o “o jornalismo e a liberdade de expressão são atividades que estão imbricadas por sua própria natureza e não podem ser pensados e tratados de forma separada.” E acrescentou: “O jornalismo é a própria manifestação e difusão do pensamento e da informação de forma contínua, profissional e remunerada.”
Engraçado, o ministro distingue perfeitamente o que é o jornalismo. Repitamos o que ele disse: “O jornalismo é a própria manifestação e difusão do pensamento e da informação de forma contínua, profissional e remunerada.”
Ora, a obrigatoriedade do diploma para jornalistas – apenas, tão somente e exclusivamente para jornalistas - não está cerceando liberdade de expressão alguma, até porque a liberdade de expressão e opinião não se esgota no exercício do jornalismo.
Será que o ministro Gilmar Mendes e seus pares – todos, à exceção do ministro Marco Aurélio Mello – não entendem isso? Repita-se: a obrigatoriedade do diploma – ontem derrubada - não está cerceando liberdade de expressão alguma, porque a liberdade de expressão e opinião não se esgota no exercício do jornalismo.
Quem já foi a Londres com absoluta certeza visitou o Hide Park. E quem foi lá certamente conheceu aquele corner, aquele canto, aquela esquina do parque onde qualquer cidadão põe um banquinho, sobe no banquinho e expele seus ódios e desabafos contra quem quiser, de Sua Majestade a rainha até o engraxate.
Mas deixemos Londres de lado e fiquemos por aqui mesmo.
O sujeito pode expressar suas opiniões por um panfleto. Pode fazê-lo num passeata que fecha vias públicas e entope os ouvidos dos transeuntes de palavras de ordem. Pode externá-las nos próprios jornais, que atualmente abrem espaço para artigos regulares de colaboradores de vários segmentos do saber e para leitores, cidadãos comuns que se manifestam contra e a favor do que acharem conveniente fazê-lo, desde o buraco aberto na rua até a última e mais escandalosa roubalheira envolvendo figuras públicas.
Alegaram Sua Excelências, além disso, que o jornalismo, por ser mais uma vocação, não exige conhecimentos técnicos tão aguçados como os que se requerem de um médico, por exemplo.
Quem afere as dificuldades de um profissão?
Está bem, então se o caso é de aferir graus de dificuldade entre as profissões, vamos usar que critérios e que parâmetros?
Sim, porque eu, como jornalista, posso achar que os requisitos técnicos para o exercício da minha profissão são elementares. Mas outro colega pode achar que não. Pode achar que são complicados demais.
Eu, como advogado ou como juiz, posso achar uma barbada interpretar a jurisprudência e todo o emaranhado processual que preciso dominar. Mas outro colega juiz ou outro colega advogado pode achar que isso tudo é muito complicado.
Quem é, portanto, um ministro Gilmar Mendes ou um ministro Cezar Peluso para elevarem suas vozes externando a concepção de que é mais “difícil” ser um médico do que um advogado ou um jornalista?
Que autoridade têm Suas Excelências para fazer essa avaliação?
Chegou-se ao desplante - sim, Sua Excelência o relator chegou ao desplante - de comparar cozinheiro a jornalista.
Mas que falta de bom senso!
E magistrados podem agir, sim, sem muito bom senso. Por que não?
Excelências, quando chegarem ao restaurante que frequentam em Brasília, favor dirigirem-se à cozinha para perguntar se o chef é um qualquer, é alguém que foi escolhido aleatoriamente na casa do vizinho.
Não é.
O chef de um bom restaurante – que nem cozinheiro é, mas chef – provavelmente já passou por “imersões” (seja lá o que isso signifique) na França, na Espanha e em outros centro da melhor gastronomia mundial. E já conquistou, sim, o seu diploma. Porque todo chef que se preze, ministros, tem, sim, um diploma que lhe atesta o preenchimento de requisitos indispensáveis para o exercício qualificado de uma profissão.
E o diploma, Excelências, deve atestar isso: a qualificação para o exercício de uma profissão.
E jornalismo, ministros, é profissão.
Quem escreve em jornais é jornalista?
O sujeito que escreve em jornais – um artigo esporádico ou mesmo regular – não está fazendo jornalismo, ministro. Está veiculando seus pensamentos por meio de um jornal.
Jornalismo, ministros, é quando se noticia - e há técnicas para se redigir uma notícia, sim - a excrescência de uma decisão como esta do Supremo. Se Vossas Excelências vierem depois para escrever um artigo em defesa da decisão do Supremo, isso não será jornalimo. Será a veiculação de um pensamento de Vossas Excelências num jornal, numa revista, seja lá onde for. Mas não será jornalismo.
Ou Vossas Excelências acham que o garçom que serve o cafezinho no plenário do Supremo exerce a magistratura apenas porque está servindo cafezinho no plenário do Supremo?
É disso, essencialmente, que se trata, ministros: da qualificação para o exercício de uma profissão – seja do jornalismo, seja na área da gastronomia, da advocacia ou seja lá o que for.
O resto, Excelências, é conversa fiada.
É conversa de ministros do Supremo Tribunal Federal.
É conversa de ministros do Supremo Tribunal Federal que se mostram posudos e entendidos em tudo.
Mas nem sempre.
Agora, por exemplo, com essa decisão que derrubou a obrigatoriedade do diploma para jornalistas, ficou provado que Suas Excelências – à exceção do ministro Marco Aurélio, o famoso “Voto Vencido”, coitado – precisam voltar para o primário.
Precisam ficar de castigo, até aprenderem que o diploma não provê tudo, não forma plenamente ninguém; o diploma indica uma qualificação para o exercício de qualquer profissão.
E por isso deveria ser mantido.
Se não o foi, é porque os ministros precisam voltar para o primário.
Para aprender e diplomar-se.
2 comentários:
Não tenho nem como utilizar qualquer outra palavra para comentar. Todas foram ditas corretamente pelo blogger.
Parabéns!
Prezado Paulo,
Você disse tudo. Mas você sabe muito bem a quem interessa a não exigência do diploma para os jornalistas.
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