quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O homem mais feliz do mundo


Foi durante minhas andanças de menino criado fora do lar que encontrei o homem mais feliz do mundo. Já se vão mais de trinta anos, e não conheci substituto. Ele morava bem no meio do mundo. Linha do Equador, bairro do Buritizal. Macapá. Eu estava em situação muito difícil quando bati à sua porta. Triste. Deprimido. Buscava alguém que me acolhesse. Um lugar para dormir. Um prato de comida. Os dois pares de roupa, eu lavava. A velha rede, também, com muito jeito para não apartar os frágeis fios de algodão.
Quando a porta se abriu para o meu amigo José Marques – que me levara até ali para tentar uma vaga, eu tive uma visão inimaginável! Meu possível anfitrião era um ancião doente. Sofria de diabetes e tinha uma perna amputada. E não era só isso: além da esposa, também de idade avançada, o casal tinha uma filha na faixa dos quarenta anos. Essa filha tivera um AVC e sofria com ataques epiléticos. Andava com dificuldade, tendo um lado do corpo semiparalisado. Mas não foi nada disto que me chamou atenção.
Fui surpreendido pela alegria. Os três me receberam como se já me conhecessem há muito tempo: “Entre, irmão Rui! Entre! A paz do Senhor! Entre!”, saudou-me a dona da casa, sorridente, e logo me abraçando. Igual gesto repetiu a senhora doente. Pela primeira vez, eu recebia um abraço. Pela primeira vez, eu senti o que devia ser um lar. Mas era lá, do final da comprida sala, que me vinha maior surpresa. Um senhor, sentado no fundo de uma rede e embalando-se com a única perna, parecia tomado de uma alegria contagiante. Fui até ele, que prontamente se esforçou em ficar de pé e de igual modo me abraçou e desejou-me boas-vindas.
Durante muitos meses, vivi naquela humilde casa de chão batido. O que me pareceu festa de boas- vindas era na verdade um estado permanente daquela família. Eu era um adolescente de 16 anos, apenas estudava. A única renda da casa consistia num benefício de salário mínimo. Em alguns dias, a comida escasseava. Meio litro de açaí podia ser dividido por quatro. Eu, que não queria apenas sujar a boca, preferia ficar fora da partilha. Foi num dia desses que troquei uma Bíblia por uma boa porção do petróleo da Amazônia. De olho há muito tempo num exemplar novo da Escritura que eu guardava, a bondosa dona de casa saiu-se com esta: “Irmão Rui, gostaria de tomar hoje uma cuia cheia de açaí?” “Claro!”, foi minha resposta pronta. “Você ainda tem aquela Bíblia que não usa?” Negócio fechado! Açaí pra cá, e a Bíblia era dela. Vivíamos uma paz inigualável.
Irmão Abdom era a alegria em forma de gente. Passava o dia inteiro sentado naquela rede. Bíblia aberta. Em sua boca, sempre um cântico, um louvor a Deus, uma palavra de adoração. Eu olhava para aquele canto da sala meio escura, e o rosto do servo de Deus resplandecia. Nunca o encontrei triste. Nunca o vi reclamar de nada. Pelo contrário, era como se toda a felicidade morasse naquele corpo mutilado. Conversava. Sorria com todos. Dava glória a Deus por tudo. Chorava de tanta felicidade quando se punha a falar do amor de Jesus. Era um homem apaixonado pelo Evangelho. Verdadeiro adorador. Ninguém o resistia. Todos chorávamos com ele. Era um choro entrecortado com risos, algo que os anjos devem viver no Céu. Dramas bem-humorados.
Já se passaram muitos anos, e o homem mais feliz do mundo permanece vivo em meu espírito. Lembro-me dele constantemente. De alguma forma, também fui tocado. Aprendi a orar o tempo todo e superar crises. Assim tenho chegado até aqui.

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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br

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