STEWART BRAND
Em 1983, o arquiteto Peter Calthorpe mudou-se para uma casa-barco em Sausalito, uma cidade na baía de San Francisco – onde eu também moro – com a maior densidade de imóveis da Califórnia. Calthorpe se perguntava qual era o elemento mágico do urbanismo que permitia que aquilo funcionasse, e concluiu que era a própria densidade. Todos os que moravam nas casas-barco se cruzavam, a pé, diariamente, indo e vindo no caminho até a margem. Todos os moradores se conheciam. Tratava-se de uma comunidade, decidiu Calthorpe, porque era um lugar onde era possível andar.
Construindo a partir desse insight, Calthorpe tornou-se um dos fundadores do novo urbanismo. Em 1985, ele introduziu o conceito de “andabilidade” num artigo da Whole Earth Review, uma revista da contracultura norte-americana. Desde então, o novo urbanismo tornou-se a força dominante no planejamento das cidades, promovendo a alta densidade, o uso misto do espaço, a andabilidade, o trânsito de massa, o design eclético e o regionalismo. Uma de suas principais ideias vem da comunidade de casas-barco de Sausalito.
Em seu artigo, Calthorpe fez uma declaração que ainda choca a maioria das pessoas: “a cidade é a forma mais ambientalmente benigna de assentamento humano. Cada morador da cidade consome menos terra, menos energia, menos água, e produz menos poluição do que os moradores de assentamentos com densidades menores”. A densidade urbana, ele aponta, permite que metade da humanidade viva em 2,8% da terra.
Há muito mais ideias a serem descobertas nas cidades desorganizadas do mundo em desenvolvimento – mais conhecidas como favelas. Um bilhão de pessoas vivem nessas condições e, de acordo com a ONU, este número irá dobrar nos próximos 25 anos. Há milhares de favelas, povoadas principalmente por jovens, e todas estão testando novas ideias urbanas desconectadas da lei ou da tradição. As ruelas das favelas, por exemplo, são uma mistura densa de comércio e serviços – barbearias de uma cadeira só e bares com três banquinhos intercalados com araras de roupas e mesas de frutas.
Uma proposta é usar essas ruelas como modelo para áreas de comércio. “Permitir que o setor informal tome conta do centro da cidade depois das 6 da tarde”, sugere Jaime Lerner, ex-prefeito de Curitiba, no Brasil. “Isso injetaria vida na cidade”.
A mudança de opinião quanto às cidades em rápido crescimento, antes consideradas má notícia, começou com um relatório de Habitat da ONU baseado num trabalho de campo inovador com 37 estudos de caso em favelas de todo o mundo. Em vez de apenas compilar números e analisá-los por meio da teoria, os pesquisadores passearam pelas favelas e falaram com os moradores. Eles voltaram com uma observação inesperada: “as cidades tem um sucesso muito maior em promover novas formas de geração de renda, e é bem mais barato fornecer serviços nas áreas urbanas, que alguns especialistas sugeriram que a única estratégia realista para a redução da pobreza é fazer com que o maior número possível de pessoas mudem-se para as cidades”.
A mágica das favelas é que elas são melhoradas de forma constante e gradual pelos próprios moradores. Aos olhos de um planejador urbano, essas favelas parecem caóticas. Eu sou formado em biologia e, aos meus olhos, elas parecem orgânicas. As favelas também são surpreendentemente verdes. Elas têm uma densidade máxima – em algumas áreas de Mumbai, há 1 milhão de pessoas por milha quadrada (387,6 milhões de pessoas por quilômetro quadrado) – e têm um uso mínimo de energia e material. As pessoas se locomovem a pé, de bicicleta, rickshaw ou táxi compartilhado. Na maioria das favelas, reciclar é literalmente um meio de vida. A favela Dharavi em Mumbai tem 400 unidades de reciclagem e 30 mil catadores. Seis mil toneladas de lixo são separadas todos os dias.
Uma ideia que poderia ser emprestada das favelas é o cultivo urbano. Os telhados oferecem oportunidades sem fim para a conservação de energia e a “ecologia de reconciliação”, que defende a divisão do espaço entre humanos e animais selvagens. Plantar um telhado verde com sua própria comunidade ecológica é uma ideia já consagrada. Para a alimentação, acrescente uma estufa ultra-eficiente; para energia extra, acrescente coletores solares. E os ganhos mais impressionantes podem vir de simplesmente pintar as superfícies de branco. De acordo com um estudo de 2008 feito pelo Laboratório Nacional Lawrence Berkeley na Califórnia, se as 100 maiores cidades do mundo substituíssem seus telhados escuros dessa forma, isso poderia compensar por 44 gigatons métricos de gases de efeito estufa.
Alguns ambientalistas já defendem as cidades compactas. Novas regras de zoneamento podem ser usadas para permitir que as pessoas morem mais perto de seu trabalho. Impostos sobre as vias podem reduzir o uso dos carros. Políticas favoráveis às crianças e subsídios para a habitação poderiam reduzir os custos de morar perto do centro de uma cidade, o que leva as famílias (e as boas escolas) para os subúrbios.
Por fim, é a melhor infraestrutura que torna as cidades possíveis – então como seria a infraestrutura repensada em termos mais verdes? Em parte isso certamente se pareceria com os novos sistemas de trânsito de massa que estão sendo construídos na China, ou com o trem de alta velocidade que finalmente está chegando aos EUA. E tudo isso deveria funcionar com a energia de de micro-redes inteligentes – permitindo que a eletricidade fosse gerada e distribuída localmente. A nova geração de reatores pequenos e modulares que está sendo desenvolvida nos EUA e em outros lugares, que fornece menos de 125 megawatts e são construídos de forma descentralizada, poderia ter um importante papel nisso.
É claro, as cidades em rápido crescimento estão longe de ser um bem absoluto. Elas concentram crime, poluição, doença e injustiça tanto quanto negócios, inovação, educação e entretenimento. O recente terremoto no Haiti demonstra o perigo das construções das favelas. Mas se, de modo geral, elas são uma boa rede para quem mora nelas, é porque as cidades oferecem mais do que apenas empregos. Elas são transformadoras: nas favelas, assim como nos prédios de escritórios e subúrbios arborizados, o progresso vai do provinciano para o metropolitano e para o cosmopolitano, e com essa transformação advém tudo o que o dicionário define como cosmopolitano: multicultural, multirracial, global, mundial, viajado, experiente, cultivado, aculturado, sofisticado, agradável, urbano.
E assim como aconteceu durante a Revolução Industrial, quando as pessoas se mudaram para as cidades em grandes números, a nova ascensão da vida na cidade também irá dominar os eventos econômicos durante a primeira metade do século 21. A vida no campo está no fim, a menos que uma mudança climática catastrófica nos leve de volta à ela. Para a humanidade, a cidade “verde” é nosso futuro.
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STEWART BRAND é autor de “Whole Earth Discipline.”
A foto mostra um prédio no alto do Morro do Cantagalo, no bairro de Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro.
Artigo extraído do Uol Internacional
Construindo a partir desse insight, Calthorpe tornou-se um dos fundadores do novo urbanismo. Em 1985, ele introduziu o conceito de “andabilidade” num artigo da Whole Earth Review, uma revista da contracultura norte-americana. Desde então, o novo urbanismo tornou-se a força dominante no planejamento das cidades, promovendo a alta densidade, o uso misto do espaço, a andabilidade, o trânsito de massa, o design eclético e o regionalismo. Uma de suas principais ideias vem da comunidade de casas-barco de Sausalito.
Em seu artigo, Calthorpe fez uma declaração que ainda choca a maioria das pessoas: “a cidade é a forma mais ambientalmente benigna de assentamento humano. Cada morador da cidade consome menos terra, menos energia, menos água, e produz menos poluição do que os moradores de assentamentos com densidades menores”. A densidade urbana, ele aponta, permite que metade da humanidade viva em 2,8% da terra.
Há muito mais ideias a serem descobertas nas cidades desorganizadas do mundo em desenvolvimento – mais conhecidas como favelas. Um bilhão de pessoas vivem nessas condições e, de acordo com a ONU, este número irá dobrar nos próximos 25 anos. Há milhares de favelas, povoadas principalmente por jovens, e todas estão testando novas ideias urbanas desconectadas da lei ou da tradição. As ruelas das favelas, por exemplo, são uma mistura densa de comércio e serviços – barbearias de uma cadeira só e bares com três banquinhos intercalados com araras de roupas e mesas de frutas.
Uma proposta é usar essas ruelas como modelo para áreas de comércio. “Permitir que o setor informal tome conta do centro da cidade depois das 6 da tarde”, sugere Jaime Lerner, ex-prefeito de Curitiba, no Brasil. “Isso injetaria vida na cidade”.
A mudança de opinião quanto às cidades em rápido crescimento, antes consideradas má notícia, começou com um relatório de Habitat da ONU baseado num trabalho de campo inovador com 37 estudos de caso em favelas de todo o mundo. Em vez de apenas compilar números e analisá-los por meio da teoria, os pesquisadores passearam pelas favelas e falaram com os moradores. Eles voltaram com uma observação inesperada: “as cidades tem um sucesso muito maior em promover novas formas de geração de renda, e é bem mais barato fornecer serviços nas áreas urbanas, que alguns especialistas sugeriram que a única estratégia realista para a redução da pobreza é fazer com que o maior número possível de pessoas mudem-se para as cidades”.
A mágica das favelas é que elas são melhoradas de forma constante e gradual pelos próprios moradores. Aos olhos de um planejador urbano, essas favelas parecem caóticas. Eu sou formado em biologia e, aos meus olhos, elas parecem orgânicas. As favelas também são surpreendentemente verdes. Elas têm uma densidade máxima – em algumas áreas de Mumbai, há 1 milhão de pessoas por milha quadrada (387,6 milhões de pessoas por quilômetro quadrado) – e têm um uso mínimo de energia e material. As pessoas se locomovem a pé, de bicicleta, rickshaw ou táxi compartilhado. Na maioria das favelas, reciclar é literalmente um meio de vida. A favela Dharavi em Mumbai tem 400 unidades de reciclagem e 30 mil catadores. Seis mil toneladas de lixo são separadas todos os dias.
Uma ideia que poderia ser emprestada das favelas é o cultivo urbano. Os telhados oferecem oportunidades sem fim para a conservação de energia e a “ecologia de reconciliação”, que defende a divisão do espaço entre humanos e animais selvagens. Plantar um telhado verde com sua própria comunidade ecológica é uma ideia já consagrada. Para a alimentação, acrescente uma estufa ultra-eficiente; para energia extra, acrescente coletores solares. E os ganhos mais impressionantes podem vir de simplesmente pintar as superfícies de branco. De acordo com um estudo de 2008 feito pelo Laboratório Nacional Lawrence Berkeley na Califórnia, se as 100 maiores cidades do mundo substituíssem seus telhados escuros dessa forma, isso poderia compensar por 44 gigatons métricos de gases de efeito estufa.
Alguns ambientalistas já defendem as cidades compactas. Novas regras de zoneamento podem ser usadas para permitir que as pessoas morem mais perto de seu trabalho. Impostos sobre as vias podem reduzir o uso dos carros. Políticas favoráveis às crianças e subsídios para a habitação poderiam reduzir os custos de morar perto do centro de uma cidade, o que leva as famílias (e as boas escolas) para os subúrbios.
Por fim, é a melhor infraestrutura que torna as cidades possíveis – então como seria a infraestrutura repensada em termos mais verdes? Em parte isso certamente se pareceria com os novos sistemas de trânsito de massa que estão sendo construídos na China, ou com o trem de alta velocidade que finalmente está chegando aos EUA. E tudo isso deveria funcionar com a energia de de micro-redes inteligentes – permitindo que a eletricidade fosse gerada e distribuída localmente. A nova geração de reatores pequenos e modulares que está sendo desenvolvida nos EUA e em outros lugares, que fornece menos de 125 megawatts e são construídos de forma descentralizada, poderia ter um importante papel nisso.
É claro, as cidades em rápido crescimento estão longe de ser um bem absoluto. Elas concentram crime, poluição, doença e injustiça tanto quanto negócios, inovação, educação e entretenimento. O recente terremoto no Haiti demonstra o perigo das construções das favelas. Mas se, de modo geral, elas são uma boa rede para quem mora nelas, é porque as cidades oferecem mais do que apenas empregos. Elas são transformadoras: nas favelas, assim como nos prédios de escritórios e subúrbios arborizados, o progresso vai do provinciano para o metropolitano e para o cosmopolitano, e com essa transformação advém tudo o que o dicionário define como cosmopolitano: multicultural, multirracial, global, mundial, viajado, experiente, cultivado, aculturado, sofisticado, agradável, urbano.
E assim como aconteceu durante a Revolução Industrial, quando as pessoas se mudaram para as cidades em grandes números, a nova ascensão da vida na cidade também irá dominar os eventos econômicos durante a primeira metade do século 21. A vida no campo está no fim, a menos que uma mudança climática catastrófica nos leve de volta à ela. Para a humanidade, a cidade “verde” é nosso futuro.
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STEWART BRAND é autor de “Whole Earth Discipline.”
A foto mostra um prédio no alto do Morro do Cantagalo, no bairro de Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro.
Artigo extraído do Uol Internacional
4 comentários:
Gostei.
Parece que muitos dos padrões de vida em sociedade terão mesmo que mudar se quisermos esticar o prazo de validade da Terra e da própria Humanidade.
Esse é um deles. Os argumentos me pareceram convincentes, se admitirmos como premissa que a vida em sociedade só é possível em cidades.
Se Brand morasse por um tempo em uma aldeia de nossos índios talvez seu insight fosse outro.
Mas o bom do artigo é que ele serve para reduzir nosso preconceito contra as favelas. Ou pelo menos o meu.
Que, das favelas, possam surgir formas culturais inovadoras, não pode haver dúvida quanto a isso; porém,as condições sanitárias inadequadas, a precariedade das construções e o difícil acesso aos serviços públicos indicam que as favelas são locais ainda distantes para alcançar o que se chama de boa vida.
Visão bem de estrangeiro, não muito distinta de quando os primeiros colonizadores pisaram no - o que hoje é o - Brasil. Certamente bas ideias podem sim ser retirqadas das favelas, mas utilizá-las como modelo urbano é claramente uma "viagem"e distorçao da realidade. Como a anônimo anterior complemetou, construções imprórias, falta de ate atendimento sanitário são grandes problema,s sme contar que justamente por serem construções imprórias e no caso de cidades como Rio de Janeiro e Belo Horizonte, construídas em encostas, provocam graves prejuizos ambientais, cujas consequencias se observa nos deslizamentos após as grandes chuvas. E pela falta de sanemamento básico, o acúmulo de lixo em locais improprios, e inexistencia de sistema de esgoto não tem nada de ecológicos e além de prejudiciais ambientalmente são um risco à saúde. O autor realmente gostaria de viver em uma favelas de Lagos, na Nigéria ou como a cidada, de Mumbai, na ïndia, obtendo água de largos canos de transporte propositalmente furados ou com vazamentos?
No meu comentário anterior onde lê-se Brand leia-se Calthorpe.
Sorry...
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