sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Supremo errou, o Congresso tem o dever de consertar

Por SÉRGIO MURILLO DE ANDRADE

Perplexos e indignados, os jornalistas brasileiros enfrentam neste momento uma das piores situações da história da profissão no Brasil. Contrariando todas as expectativas da categoria e a opinião de grande parte da sociedade, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria, acatou, em junho passado, o voto do ministro Gilmar Mendes considerando inconstitucional o inciso V do art. 4º do Decreto-Lei 972 de 1969 que fixava a exigência do diploma de curso superior para o exercício da profissão de jornalista. Outros sete ministros acompanharam o voto do relator. Perderam os jornalistas e também os 180 milhões de brasileiros, que não podem prescindir da informação de qualidade para o exercício de sua cidadania.
O presidente-relator e os demais magistrados, sem saber o que é o jornalismo, mais uma vez – como fizeram no julgamento da Lei de Imprensa – confundiram liberdade de expressão e de imprensa e direito de opinião com o exercício de uma atividade profissional especializada, que exige sólidos conhecimentos teóricos e técnicos, além de formação humana e ética.
O voto do STF humilha a memória de gerações de jornalistas profissionais e, irresponsavelmente, revoga uma conquista social de mais de 40 anos. Em sua lamentável manifestação, Gilmar Mendes defende transferir exclusivamente aos patrões a condição de definir critérios de acesso à profissão. Desrespeitosamente, joga por terra a tradição ocidental que consolidou a formação de profissionais que prestam relevantes serviços sociais por meio de um curso superior.

Ética e responsabilidade
De todos os argumentos contrários a esta exigência, o que culpa a regulamentação profissional e o diploma em jornalismo pela falta de liberdade de expressão na mídia talvez seja o mais ingênuo, o mais equivocado e, dependendo de quem o levante, talvez seja o mais distorcido, neste caso propositalmente.
Qualquer pessoa que conheça a profissão sabe que qualquer cidadão pode se expressar por qualquer mídia, a qualquer momento, desde que ouvido. Quem impede as fontes de se manifestar não é nem a exigência do diploma nem a regulamentação, porque é da essência do jornalismo ouvir infinitos setores sociais, de qualquer campo de conhecimento, pensamento e ação, mediante critérios como relevância social, interesse público e outros. Os limites são impostos, na maior parte das vezes, por quem restringe a expressão das fontes – seja pelo volume de informações disponível, seja por horário, tamanho, edição (afinal, não cabe tudo), ou por interesses ideológicos, mercadológicos e similares. O problema está, no caso, mais na própria lógica temporal do jornalismo e nos projetos político-editoriais dos donos da mídia.
Nunca é demais repetir, também, que qualquer pessoa pode expor seu conhecimento sobre a área em que é especializada. Por isso, existem tantos artigos, na mídia, assinados por médicos, advogados, engenheiros, sociólogos, historiadores e, inclusive, os políticos. E há tanto debate sobre os problemas de tais áreas. A própria regulamentação profissional prevê a função de colaborador. Além disso, nos longínquos recantos do país existe a figura do provisionado, até que surjam escolas próximas. Deve-se destacar, no entanto, que o número de escolas cobre, hoje, quase todo o território nacional.
O Brasil tem uma tradição jurídica de regulamentar o exercício da maioria das profissões, especialmente as de nível superior. É função do Estado determinar parâmetros e requisitos mínimos no processo de formação do futuro profissional, estabelecendo padrões de qualidade na prestação de serviços à sociedade. Dessa forma, a regulamentação é meio legítimo de defesa corporativa, mas sobretudo certificação social de qualidade e segurança ao cidadão.
Alguns dizem que só devem ser regulamentadas profissões que, de alguma forma, no seu exercício possam causar danos à sociedade: Medicina e engenharia, por exemplo. É verdade? Levando ao extremo esse raciocínio torto, qualquer um pode ser juiz ou advogado? E jornalismo irresponsável, desqualificado, não causa danos, por vezes irreparáveis?
Jornalistas têm, sim, uma profissão, específica e singular. Por isso, o exercício da profissão, assim como o de outras com as quais atua de forma estreita, precisa ser regrado por uma regulamentação que dê conta de abarcar as suas funções exclusivas a partir do entendimento de quais são os seus fazeres. E na regulamentação profissional é que tratamos, como em qualquer outra profissão, de garantir não apenas a defesa de uma categoria como também, e principalmente, a qualidade, a ética, a responsabilidade, a pluralidade para o cumprimento da função social reservada ao jornalismo.

Dignidade e qualidade
Outro argumento inaceitável usado pelos patrões e pelos juízes do Supremo é que o diploma era um entulho autoritário produzido pela ditadura militar. Na fundação da ABI, em 1908, portanto há mais 100 anos, a categoria já discutia a importância da formação escolar. Em 1918, quarenta e seis anos antes de se instalar a ditadura de 1964, os jornalistas reunidos no primeiro Congresso da categoria, no Rio de Janeiro, defenderam a formação específica em jornalismo para o exercício da profissão. E seguiram lutando por essa bandeira e pela regulamentação profissional.
Foi graças à mobilização e à pressão da categoria que, depois de mais de 50 anos de luta, conquistou-se a exigência do diploma, nos termos previstos desde o final da primeira década do século 20. Ameaça, de fato, à liberdade de expressão é a crescente concentração da propriedade dos meios de comunicação, sobre a qual, aliás, não se observa nenhuma manifestação da Justiça.
A profissão de jornalista está consolidada não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. A Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), neste momento, está preocupada em rechaçar os ataques e as iniciativas de desqualificar a profissão, impor a precarização das relações de trabalho e ampliar o arrocho salarial existente, objetivos explícitos na ação desregulamentadora e muitas vezes ignorados por ingênuos ou mal intencionados.
A Fenaj mantém o compromisso público de seguir lutando em defesa da regulamentação da profissão e da qualificação do jornalismo. Acreditamos que neste momento cabe ao Congresso Nacional recuperar suas prerrogativas indevidamente usurpadas pelo STF e resgatar através de emenda à Constituição ou projeto de lei a exigência do diploma.
Somos 80 mil jornalistas brasileiros. Milhares de profissionais que, somente por meio da formação, da regulamentação e da valorização do seu trabalho, conseguirão garantir dignidade para a categoria, além de qualidade, respeito ao interesse público, responsabilidade e ética no jornalismo.

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SÉRGIO MURILLO DE ANDRADE é presidente da Federação Nacional dos Jornalistas
Artigo disponível no Observatório da Imprensa

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