quinta-feira, 1 de outubro de 2020

"O Dilema das Redes" é perturbador. Mas transmite a sensação de que as redes são o apocalipse. São?


O Dilema das Redes
, documentário do diretor Jeff Orlowski disponível desde o início de setembro na Netflix, é o tema da hora.
Está em todas as bocas.
Em todos os debates.
Em todas as críticas - avassaladoramente positivas, diga-se.
Há duas duas semanas que vários leitores do Espaço Aberto, por e-mail ou zap, fazem-me aquela pergunta: "Já viste"?
Vi agora.
E achei o documentário um primor na sua forma e perturbador no seu conteúdo.
Mas é apocalíptico.
Acho que é.
O filme é perturbador porque instigante, objetivo, direto, ilustrativo sobre essa realidade realmente maluca, disruptiva das redes sociais.
E, mais importante ainda, deve ser visto com atenção e interesse porque tem como personagens executivos que conhecem as estranhas de Google, Facebook, Instagram e YouTube, entre outros gigantes. Porque moldaram-nas para chegarem ao que são hoje.
Conhecendo-lhes as entranhas, são os mais abalizados para avaliar a extensão de seus (deles próprios) feitos para atrair seguidores e torná-los, digamos assim, reféns das redes sociais onde atuavam até passado recente.
Mas por que achei o documentário apocalíptico?
Porque, sem esforço nenhum, fiquei com a impressão de que o documentário tenta mostrar que essas gigantes da internet, ao desenvolverem ferramentas para agrilhoar, para agarrar pelo colarinho seus seguidores, estariam fazendo algo único na história das grandes corporações desde que o mundo é mundo.
E não estão.
Empresas vivem para ganhar dinheiro. Muito dinheiro.
Muitas podem até ganhar pouco dinheiro.
Mas todas, grandes ou pequenas, pensam dia e noite, noite e dia, apenas em ganhar muito dinheiro.
O resto é conversa fiada.
Não existe, nesse ambiente impregnado pela sofreguidão do lucro, uma ética do bem e do mal. Existe a vontade de lucrar. Apenas isso.
Google, Facebook, Instagram e YouTuber querem ganhar dinheiro - aos bilhões, de preferência - até mesmo quando fazem o bem, até mesmo quando põem à nossa disposição instrumentos que edificam os melhores e mais caros valores humanos, como possibilitar, por exemplo, que os humanos interajam e se tornem fraternos (vejam que coisa mais maravilhosa, gente!) mesmo a dezenas, centenas ou milhares de quilômetros de distância.
Portanto, nada de novo debaixo do Sol em relação a esse aspecto.
Mas o documentário tem o propósito virtual de mostrar que estamos (os que são, evidentemente, fissurados nas redes sociais) amoldados para: 1: Nunca desgrudarmos dos cliques; 2: Para acreditarmos mais naquilo que queremos acreditar (hehe) e sermos sugados sempre na direção daquilo que possa confirmar nossas vontades e nossas tendências (hehe - outra vez).
Sobre os truques (mágicos e imperceptíveis, segundo o documentário) das redes sociais para não desgrudarmos dos cliques, eu me lembrei de uma experiência pessoal, há uns dois anos, na Feira do Livro, aqui em Belém.
Passei pela frente de um estande e uma vendedora perguntou-me se eu não queria entrar para ver os seus produtos.
Respondi que não e segui em frente.
Ela perseguiu-me por uns 50 metros, apitando nos meus ouvidos para que voltasse. Quase chamo os seguranças pra me livrar daquela perseguição.
Ela não era o Instagram, nem o Google, nem o Twitter, nem o Pinterest. Era apenas uma vendedora fazendo o seu papel de atrair um comprador em potencial, mesmo que, para tanto, fosse necessário segurá-lo pelo gogó e arrastá-lo para dentro do estande. Apenas isso.
Qual é a diferença entre o objetivo da vendedora e o objetivo das redes sociais, quando criam ferramentas para mais, mais e mais cliques? A meu ver, nenhum.
E sobre a arma em que se transformaram os algoritmos, que tentam adivinhar nossas emoções, tendências e reações?
Aí, recorro a outra experiência muito pessoal.
Dificilmente, mas muito dificilmente mesmo, entro numa loja para comprar alguma roupa ou outros acessórios. Mas já aconteceu de entrar e pedir, tipo assim:
- Tu tens um par de meias?
O cara me mostra um par, eu compro, pergunto quanto é... Daí ele me diz:
- O senhor não precisa de calça?
Não.
- De sapato?
Nenhum.
- De short?
Já tenho.
- Mas de camisa o senhor precisa.
Não quero.
- De um terno?
Credo! Não.
Mesmo com tantos nãos, o vendedor, ou a vendedora, vai despejando tudo aquilo, às toneladas, na minha frente.
É incômodo?
Pra mim, é uma experiência horrorosa.
Tenho vontade de correr dali.
Uma vez, quase corri mesmo.
Sinto-me assediado, constrangido - mas o cara está no papel dele. Está me entupindo de opções, por avaliar que, se eu precisei de meias, também precisarei até mesmo de 100 litros de maniçoba (se tivesse na loja para vender).
Qual é, portanto, a diferença desse vendedor para a Amazon, quando me oferece automaticamente e virtualmente várias opções de livros, enquanto estou procurando um deles para comprar?
Pra mim, não há diferença.
Mas por que considero O Dilema das Redes perturbador e obrigatório sobretudo para nós, jornalistas, que lidamos com o tormento das fake news, um dos lixos mais nojentos e contaminantes produzidos pelas redes sociais?
Porque o potencial das redes de disseminarem seus objetivos é fenomenal, inesgotável e inestimável. Esse é um problema muito perigoso.
Mas é o apocalipse?
Não é.
Porque é necessário instituírem-se (e já estão sendo instituídos, ainda que debilmente, reconheça-se) freios, regulamentações e mecanismos para salvaguardar os dados individuais de todos nós, que já somos conhecidos dessas redes mais do que conhecemos a nós mesmos).
Essa tarefa é de fácil consecução? Realmente não. Ao contrário, ela é desafiadora para o governo de qualquer país democrático.
Como também é desafiadora para inúmeras esferas da sociedade civil, que poderão, paralelamente, criar frentes de monitoramento e de pressão dessas redes sociais, em benefício da própria sociedade.
Aliás, Tristan Harris, o ex-executivo de 36 anos do Google que se transformou num ativista na luta contra as ameaças embutidas no uso abusivo das redes sociais e tem intensa participação no documentário, criou em 2013 o Center for Humane Technology, para aprofundar esse debate e provocar mudanças.
É exatamente isso.
Iniciativas assim precisam replicar-se, à exaustão, para afastarmos essa sensação de que as redes sociais são o apocalipse.
Não são.
Até porque, se fosse assim, o apocalipse engoliria as próprias redes sociais.
E elas não querem ser engolidas porque, coitadas, precisam continuar ativas para ganhar mais e mais seus bilhões.

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