terça-feira, 4 de novembro de 2014
Me esqueça!
Por ANA DINIZ, jornalista, em seu blog Na rede
Circula no Judiciário uma boa quantidade de processos movidos por pessoas que querem tirar dos
sites de busca informações sobre si. Geralmente deslizes, devida ou indevidamente gravados; ataques pessoais; críticas e até calúnias. Alguns têm obtido medidas favoráveis. Mas elas são puro paliativo.
Porque as pessoas não esquecem. Esquecer é morrer: a humanidade é o que é porque tem memória, aprende e transmite, mantém um processo contínuo de acumulação de experiência que lhe permite a sobrevivência e a vida cada vez mais longa.
Na Roma dos imperadores havia uma disposição chamada damnatio memoriae, a condenação da lembrança, aplicada a todos os que eram considerados supercriminosos. Depois de sua morte, geralmente por execução, apagava-se tudo o que se referia a eles: raspavam-se moedas, quebravam-se estátuas, repintavam-se os quadros, riscava-se o nome dos documentos, fossem estes de papiro, de pedra ou de bronze. Mas controlar a memória é impossível: a imperatriz Messalina, sobre quem foi aplicada a condenação, é ainda, dois mil anos após sua morte em 47, o símbolo da sexualidade descontrolada. Três bustos feitos em pedaços e recompostos por diligentes arqueólogos restauram seu rosto, com razoável grau de certeza. O esquecimento póstumo talvez fosse até benéfico para ela e imagino que, se essa adolescente mãe de dois filhos tivesse vivido mais duas décadas, tentaria apagar o seu passado. Se vivesse hoje, tentaria tirar da internet no mínimo a encenação de casamento que foi a causa próxima de sua morte.
Trago este assunto hoje porque volta à discussão e às pautas de noticiário mais uma tentativa de controle dos conteúdos da internet, uma nova roupagem para a antiquíssima luta entre a liberdade de expressão e a censura, ou, como querem os mais moderados, entre o dizer e seus limites. Não adianta. A China fez isso e gradativamente está perdendo a batalha.
O boato, que circulava ao pé do ouvido, hoje trafega em alta velocidade pelo WhatsApp. Continua sendo um boato, com as consequências de qualquer boato, que podem ser resumidas em dois ditados: “onde tem fumaça tem fogo” e “em tempo de guerra boato é fato”. Claro que a fumaça pode ser de gelo seco, não de fogo; e que a maioria dos boatos não se torna fato, sequer cria fatos novos. Mas em tempo de guerra, com a censura atuando a pleno, boato é fato, mesmo: quando ninguém sabe com certeza do que está acontecendo, é melhor se prevenir...
Há pessoas que, despreocupadas como o foi Messalina, revelam-se completamente para os usuários dos canais de comunicação. Nudez de corpo e nudez de alma. Muitas delas estão na justiça, agora, tentando conseguir para si o esquecimento que os imperadores romanos impunham aos que consideravam de exemplo danoso ao império. Melhor fariam se fossem contidos em seus atos e dizeres. O Estado não é instância adequada para proteger imprudentes: basta um pezinho para ele, e ele ocupa o corpo inteiro, ou seja, um simples precedente é suficiente para instaurar censura. E a censura é o mal maior.
Quanto à calúnia, existem medidas legais contra ela desde que sistemas jurídicos foram instituídos. Mas na raiz da calúnia está a maledicência e esta nada nem ninguém seguram: acredito que os hominídeos já grunhiam condenações entre si e processos do que hoje se chama “desconstrução de imagem”, eufemismo para a maledicência objetivamente aplicada, que desdobra falhas alheias até o ponto do insuportável, induzindo a calúnia, podem ser encontrados na Bíblia, entre outras memórias humanas.
O curioso disso tudo é que a maioria das pessoas é esquecida sumariamente duas gerações após sua morte. Pedir para ser esquecido antes de morrer apenas antecipa o que fatalmente acontecerá – e dos atos e dizeres praticados restará apenas o que a humanidade julgar necessário para seu aprendizado.
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