sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Réquiem para o último quintal de Belém

FRANCISCO SIDOU

Atendendo a vários amigos que me cobraram a falta do texto na postagem anterior, estou colando abaixo. Acabei esquecendo de fazê-lo diante da brilhante ilustração do grande J.Bosco, que quase dispensa palavras adicionais. Mas vamos ao texto:
"Li, certa feita, em alguma biblioteca pública, quando estudante, um livrinho delicioso intitulado "A cultura dos quintais". Já procurei na internet e não consegui localizar nem o título do livro, nem seu autor. O Alfredo Garcia, poeta e escritor paraense (dos bons), tem uma obra nesse gênero, salvo engano. Talvez ele possa ajudar os leitores do Espaço Aberto dando uma "canja", pois não ?
Pois bem. A leitura daquele livrinho me foi de grande valia na juventude. Aprendi, por exemplo, que as crianças que brincam (brincavam...) no quintal são mais alegres e saudáveis. O contato com a natureza lhes faz tão bem que elas se tornam adultos mais cordiais, inteligentes e sensíveis. Tive essa valiosa experiência na infância. Nossa casa no interior (Eirunepé-AM) tinha um quintal que era um verdadeiro pomar e ainda dava para o belo Rio Juruá , onde havia um porto de pequeno porte com um trampolim, no estilo "toboagua" de hoje, onde a garotada se divertia a valer, pulando e saltando naquela imensa piscina natural. Era uma festa no interior.
Meu pai (Luiz Sidou) era um ecologista nato, numa época em que ainda não se falava em ecologia. Não tinha instrução acadêmica, mas possuía grande sensibilidade e respeito no trato com a natureza, pois havia tirado o sustento da família trabalhando, como seringueiro, nas brenhas do Rio Tarauacá, durante os verdes anos de sua juventude. Ele costumava dizer que o homem insensato é aquele que destrói a fonte de seu próprio sustento. Alguém tem alguma dúvida disso nos "tempos modernos", em que o desmatamento feroz ameaça transformar a Amazônia em imenso deserto?
Essas recordações me veem à mente depois de ler na coluna "Tutti Qui", em O LIBERAL de domingo passado, que o último quintal de Belém brevemente vai virar mais uma "torre de marfim", aliás, desculpem, de tijolo, cimento, ferro, vidro e aço... O Palacete Faciola, na Almirante Barroso, é o "último dos moicanos". O imóvel ocupava imensa área verde, incluindo o enorme quintal, um verdadeiro sítio dentro da cidade. Foi desapropriado pela Prefeitura de Belém, na gestão do Edmilson, que ali pretendia construir um asilo para doentes mentais... Quem sabe não seria o caso de "internar" ali os autores dessa insana transação imobiliária!
Derrubaram toda a imensa área verde para erguerem mais três torres tórridas. De torre em torre, a cidade vai crescendo verticalmente, em ritmo frenético, com a construção desvairada de novas muralhas de cimento e aço, que estão "matando" os pulmões da cidade.
Até quando iremos assistir, impassíveis, à destruição da vida na cidade, que vai se transformando em imensa ilha de calor? Um dos últimos "sítios" de Belém, também destruído sem dó nem piedade, foi o da casa que pertenceu à professora Anunciada Chaves, que se orgulhava de receber os amigos e alunos em seu belo quintal, na Rui Barbosa com Boaventura, em memoráveis tertúlias literárias, onde se respirava oxigênio, inteligência e cultura. Sabem o que surgiu em seu lugar ? Um prédio de seis andares que abriga hoje a sede da Associação dos Defensores Públicos Federais. Pasmem, os defensores federais não conseguiram evitar aquele crime ambiental e até desfrutam hoje de uma sede construída sobre os destroços daquele que foi um dos mais belos quintais de Belém... Pobre Belém !
Outro "sítio" dentro da cidade, também destruído pelas picaretas da insensibilidade, foi o antigo Palacete Chermont, na Governador José Malcher com Almirante Wandenkok.
Também tinha um belo quintal, cheio de árvores frutíferas. Lembro que escrevi, na época, um artigo inflamado em O LIBERAL, clamando ao Ministério Público do Meio Ambiente (?) que fizesse "alguma coisa" para evitar mais esse crime ambiental contra Belém. Não houve retorno. Também pudera... Era julho em Belém. A cidade estava vazia. Clima favorável à prática de delitos com a tranquilidade dos que têm certeza de que ficarão impunes. Os "fiscais da Lei" também vão à praia, em merecidas e dobradas férias...
No caso do Palacete Chermont, o crime foi anunciado. Nas caladas da noite, alguns "agentes", empunhando picaretas, derrubavam as paredes do velho prédio para evitar que ele fosse "tombado". Na verdade, acabou tombando, levando não só mais um pedaço do verde, mas também as esperanças daqueles que ainda acreditavam em alguma providência das "autoridades ditas competentes"...
E assim a cidade vai "crescendo". De torre em torre, Belém vai ficando totalmente "asfixiada", porque o vento que vem da natureza exuberante que a rodeia vai sendo aos poucos impedido de entrar na cidade pelas "muralhas" erguidas pela ambição desvairada e pela insensibilidade abissal dos empreiteiros, incorporadores e vendedores de sonhos consumistas, que acabam destruindo as "pontes" com a natureza e a vida.
Parodiando o livro famoso "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway, diria que os sinos também dobram pelos insensatos filhos de Belém que, em nome de um falso progresso, estão destruindo, junto com as áreas verdes, a bela cidade em que vivemos e amamos.
Ai de ti, Belém, se não reagires a tempo de evitar o pior, ou seja, que todos os teus filhos acabem sendo devorados pelo calor insuportável e pela omissão dos que podem fazer alguma coisa para evitar essa tragédia anunciada e se refugiam em suas ilusórias "ilhas de conforto"... Até quando ?

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FRANCISCO SIDOU – que o Espaço Aberto acolhe com satisfação – é jornalista e estará por aqui regularmente, às sextas-feiras, com um amplo espaço à disposição para brindar os leitores com artigos como esse.

Um comentário:

AHT disse...

Prezado Sr. Francisco Sidou

Sobre o livro citado, de Alfredo Garcia, vide uma mensagem que enviei para o seu perfil no Facebook (pasta "outros").

Grato,

AHT