quinta-feira, 7 de julho de 2011
Ruas verticais
Como seria morar em uma rua vertical, onde as casas abandonassem a linha plana e se amontoassem uma sobre a outra? Onde não houvesse janelas abertas para a passagem comum e onde simples blocos de massa homogênea estivessem tão juntos, mas, tão juntos, que parecessem uma coisa só? Se você olhar bem o desenho das grandes cidades, verá que nossas ruas estão se verticalizando.
Já ultrapassamos o tempo de construção de prédios enquanto elementos pontuais na paisagem urbana. Hoje, o centro das cidades apresenta um desenho centrífugo. A força do concreto se expande sem parar rumo à periferia. Vai ganhando terrenos sólidos. Aterrando. Construindo bases fortes que possam edificar para cima. Ruas verticais.
Um prédio de trinta ou quarenta andares pode abrigar cento e sessenta famílias. Aplicada a modesta média de três habitantes por unidade, lá se vão quase quinhentas almas. Multiplique-se isso por seis ou oito blocos de um único empreendimento, e podemos alcançar facilmente o universo de quatro mil pessoas. Imponentes ruas verticais.
A solidão é um dos grandes problemas nas ruas verticais. Mesmo estando tão juntas, dividindo paredes, sem boas iniciativas de condomínios, casas nessas ruas podem funcionar como meros depósitos de gente. Gente contaminada pela frieza do ferro e do tijolo. Gente capaz de experimentar a mais terrível das solidões: a solidão assistida. Assistida por uma multidão cujos olhos perderam a capacidade de enxergar além de si e de seu grupo fechado. Em lugares assim, os homens parecem não valer mais do que a areia escondida nessas ruas. Não passam de tijolos vivos, anônimos, respirando entre a matéria morta de suas valorizadas paredes.
Ruas verticais não têm janelas. Pelo menos, não segundo as primitivas construções humanas. Janelas e, em caso mais nobres, varandas estão sempre voltadas para o vazio inacessível. Ninguém pode compartilhar desse mundo hermético. Não há como gritar por ajuda de um vizinho, perguntar as horas ou indagar se vai chover. O grito é sufocado. As horas são individualistas. E a chuva, embora lavando essa rua de alto a baixo, será um espetáculo ou um tenebroso assunto particular. A chuva não tem mais o poder de molhar a roupa estendida no quintal. De expulsar o garoto empinador de pipas ou de atrair aqueles que, em turba de euforia, fartavam-se com esse gratuito chuveiro celeste. Rua vertical é diferente.
Ruas verticais nunca se cruzam. Aliás, esta parece ser hoje uma oração do belenense. Todos. Ruas verticais devem ficar de pé, para o nosso próprio bem. E o modo de percorrermos essas ruas é igual ao das ruas planas: andando ou sendo levados por um veículo. A diferença está nos degraus. Está no carro comum que nos transporta. O veículo é de todos, mas, despersonalizado, tem um nome engraçado: elevador. Ele representa o metro quadrado mais povoado do planeta. Porém, é justamente onde a solidão assistida mais se evidencia. Eleva a dor mesmo.
Nessas ruas verticais, todo mundo deve ser igual, pelo menos do lado de fora. Há regras contra qualquer mudança exterior. Às vezes, durante o Natal e a Copa alguns individualizam as suas casas. Mas o adorno é exceção à regra. E ninguém passa na frente. Ninguém pode apreciar. E se alguém passar pelas antigas ruas, só levantando a cabeça. É coisa para aquele mundo.
Para quem vive na linha do Equador, ruas verticais são ainda mais curiosas. Astronomicamente, formam um desenho engraçado. Parecem apontar para cima, mas, na verdade, estão de lado, planas como essa linha. De banda, como diria o caboclo. Mas, deixa o povo pensar que está por cima!
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RUI RAIOL é escritor
(www.ruiraiol.com.br)
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